Instantâneos da primeira Primavera Brasileira II - Um capítulo da história do Estado de direito
A
revolta cuiabana de 1834 foi planejada dentro de uma associação que
contava com grandes proprietários da cidade, inimigos de outra parcela
das classes dominantes. Poupino era uma das lideranças ricas por trás da
revolta. Proprietário de 27 imóveis e 25 escravos, era a quinta pessoa
na lista de sucessão do governo provincial (equivalente distante do
"estadual" hoje). Nos meses que antecederam a revolta os que estavam à
sua frente foram sucessivamente se afastando "por motivos de saúde", até
que chegou sua vez. Dessas coisas absolutamente suspeitas, enfim... Ele
assumiu o posto e em poucos dias uma revolta estourou e resultou na
morte de muitos de seus adversários.
Simplificando um tanto as
coisas, pode-se dizer que em parte a revolta era uma conspiração de
parte dos grupos dominantes contra os que disputavam com eles o poder
político e o mercado local. Mas apenas em parte, pois o ódio popular
tinha outros tantos significados e os adversários do grupo de Poupino
que morreram estavam em geral ligados a dois tipos de opressão ao povo
pobre: o oficialato das tropas, objeto de uma política racista, que
barrava a ascensão dos negros e pardos, e o monopólio do comércio, que
especulava com coisas essenciais à sobrevivência. Mobilizados por
poderosos para destronar outros poderosos, os setores populares tinham
seus interesses e valores próprios e, como é comum acontecer nesses
casos, logo o movimento rachou.
Poupino, que nos primeiros dias
da revolta dava vivas à "revolução patriótica" passou a organizar uma
contra-revolução (a expressão chega a aparecer nas fontes). Organiza
petições a serem assinadas pelos "Amigos da Boa Ordem" em que pede apoio
para punir os "vândalos" e "anarquistas" (sim, são palavras tiradas do
processo-crime, de 1834-35). Com o pretexto de que seus aliados das
classes populares deveriam ajudar a conter uma reação ao movimento no
interior, ele pede que se dirijam para lá. Aproveita-se da ausência
deles para dar início à traição, prendendo os que ficaram na cidade, com
o apoio daqueles autointitulados "Amigos da Boa Ordem".
Com
seus antigos aliados pobres na cadeia e após a chegada de um novo
governante, que se torna rapidamente seu aliado, Poupino pode consolidar
sua traição. Avisa alguns amigos por cartas para que saíssem da cidade
para evitar a repressão e manda prender os demais. Mas tudo que ele não
queria era um julgamento justo, pois se os "criminosos" depusessem
diriam que Poupino era uma das lideranças do movimento. Evitando um
julgamento, ele tentou convencer as demais autoridades a fuzilar
sumariamente os presos, aos gritos de "Viva a Lei! Morram os Ladrões.
[...]. Faça-se fogo a quem for suspeito!". Uns apoiaram, outros não, e
ele teve de mudar de estratégia: mandou parte dos "criminosos" para fora
da província, com ordem para que fossem soltos em Goiás, ou de
preferência mais longe. Procedimento tão ilegal quanto o fuzilamento
sumário.
Mas restavam outros presos (ilegalmente) que sabiam
demais sobre o papel de Poupino nos distúrbios. Alguns juízes e
promotores que passaram a ouvir o que eles tinham a dizer foram
ameaçados de morte e, em seguida, presos. Ilegalmente, claro! O juiz e o
promotor do caso acabaram sendo mandados para o Rio de Janeiro e
penaram seis meses de viagem pelo Pantanal e por São Paulo,
acorrentados. Eram acusados de serem cúmplices dos "ladrões", "vândalos"
e "anarquistas".
E o que diziam esses presos? E o que fazia o
presidente da província, maior autoridade do lugar, a respeito disso?
Vamos às fontes:
"Durante essas vergonhosas cenas, os presos da
cadeia gritavam em altas vozes que tudo tinha sido feito por
insinuações de João Poupino (tudo isso quando o presidente por ali
passava), que eles por serem pobres ali estavam, enquanto o mesmo
Poupino, e outros estavam com as armas na mão, e passeavam livremente. O
Presidente recolheu-se a sua casa, mandou chamar o juiz de direito,
ordenando que os fizesse calar com rodas de pau!"
Fica aqui mais um capítulo da história do Estado de direito no Brasil.
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