sábado, 24 de agosto de 2013

Instantâneos da primeira Primavera Brasileira II - Um capítulo da história do Estado de direito

A revolta cuiabana de 1834 foi planejada dentro de uma associação que contava com grandes proprietários da cidade, inimigos de outra parcela das classes dominantes. Poupino era uma das lideranças ricas por trás da revolta. Proprietário de 27 imóveis e 25 escravos, era a quinta pessoa na lista de sucessão do governo provincial (equivalente distante do "estadual" hoje). Nos meses que antecederam a revolta os que estavam à sua frente foram sucessivamente se afastando "por motivos de saúde", até que chegou sua vez. Dessas coisas absolutamente suspeitas, enfim... Ele assumiu o posto e em poucos dias uma revolta estourou e resultou na morte de muitos de seus adversários.

Simplificando um tanto as coisas, pode-se dizer que em parte a revolta era uma conspiração de parte dos grupos dominantes contra os que disputavam com eles o poder político e o mercado local. Mas apenas em parte, pois o ódio popular tinha outros tantos significados e os adversários do grupo de Poupino que morreram estavam em geral ligados a dois tipos de opressão ao povo pobre: o oficialato das tropas, objeto de uma política racista, que barrava a ascensão dos negros e pardos, e o monopólio do comércio, que especulava com coisas essenciais à sobrevivência. Mobilizados por poderosos para destronar outros poderosos, os setores populares tinham seus interesses e valores próprios e, como é comum acontecer nesses casos, logo o movimento rachou.

Poupino, que nos primeiros dias da revolta dava vivas à "revolução patriótica" passou a organizar uma contra-revolução (a expressão chega a aparecer nas fontes). Organiza petições a serem assinadas pelos "Amigos da Boa Ordem" em que pede apoio para punir os "vândalos" e "anarquistas" (sim, são palavras tiradas do processo-crime, de 1834-35). Com o pretexto de que seus aliados das classes populares deveriam ajudar a conter uma reação ao movimento no interior, ele pede que se dirijam para lá. Aproveita-se da ausência deles para dar início à traição, prendendo os que ficaram na cidade, com o apoio daqueles autointitulados "Amigos da Boa Ordem".

Com seus antigos aliados pobres na cadeia e após a chegada de um novo governante, que se torna rapidamente seu aliado, Poupino pode consolidar sua traição. Avisa alguns amigos por cartas para que saíssem da cidade para evitar a repressão e manda prender os demais. Mas tudo que ele não queria era um julgamento justo, pois se os "criminosos" depusessem diriam que Poupino era uma das lideranças do movimento. Evitando um julgamento, ele tentou convencer as demais autoridades a fuzilar sumariamente os presos, aos gritos de "Viva a Lei! Morram os Ladrões. [...]. Faça-se fogo a quem for suspeito!". Uns apoiaram, outros não, e ele teve de mudar de estratégia: mandou parte dos "criminosos" para fora da província, com ordem para que fossem soltos em Goiás, ou de preferência mais longe. Procedimento tão ilegal quanto o fuzilamento sumário.

Mas restavam outros presos (ilegalmente) que sabiam demais sobre o papel de Poupino nos distúrbios. Alguns juízes e promotores que passaram a ouvir o que eles tinham a dizer foram ameaçados de morte e, em seguida, presos. Ilegalmente, claro! O juiz e o promotor do caso acabaram sendo mandados para o Rio de Janeiro e penaram seis meses de viagem pelo Pantanal e por São Paulo, acorrentados. Eram acusados de serem cúmplices dos "ladrões", "vândalos" e "anarquistas".

E o que diziam esses presos? E o que fazia o presidente da província, maior autoridade do lugar, a respeito disso? Vamos às fontes:

"Durante essas vergonhosas cenas, os presos da cadeia gritavam em altas vozes que tudo tinha sido feito por insinuações de João Poupino (tudo isso quando o presidente por ali passava), que eles por serem pobres ali estavam, enquanto o mesmo Poupino, e outros estavam com as armas na mão, e passeavam livremente. O Presidente recolheu-se a sua casa, mandou chamar o juiz de direito, ordenando que os fizesse calar com rodas de pau!"

Fica aqui mais um capítulo da história do Estado de direito no Brasil.

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