O Brasil foi construído por meios violentos. Em nossa história, já se dizia mais de trezentos anos atrás, "os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o edifício”. A apropriação da terra, com a expansão das fronteiras de colonização, se fez e se faz, do século XVI ao XXI, por meio da expulsão, incorporação forçada ou extermínio dos povos indígenas. O mundo do trabalho foi por mais de três séculos dominado pela escravidão, ou seja, pela permanente possibilidade de recurso à violência. A unidade política do país foi resultado de negociações e de conflitos sangrentos, com vitórias das forças do Estado sobre movimentos que iam de pequenos ajuntamentos a imensas guerras civis, com importante participação popular e um saldo de milhares de mortos. Nossos quase dois séculos como nação independente são uma incessante acumulação de escombros, história de grandes e de pequenas lutas, tragédia de grandes e de pequenos massacres, farsas dos que, conscientemente ou não, vivem de apagar os rastros da barbárie para melhor legitimar a civilização que a produz.
Não contamos os eventos sangrentos como glórias do passado. Eles raramente frequentam nossa memória histórica e mesmo nestes casos apenas como acidentes de percurso ou dolorosas mas inevitáveis eliminações de entraves ao progresso. Aprendemos a ver a história do Brasil como uma linha evolutiva pontuada por eventos supostamente pacíficos. Um “descobrimento” amistoso, uma Independência como “desquite amigável” ou “acordo de elites”, uma proclamação da república à qual o povo assistiu “bestializado”, duas ditaduras implantadas sem resistência imediata e derrubadas sem uma insurreição popular, sendo a oposição aberta ao autoritarismo obra de grupos isolados – “idealistas”, quando não “terroristas”. Avanços nos direitos e na cidadania vêm invariavelmente de cima para baixo: da primeira constituição, oferecida pelo Imperador, à última, fruto de uma abertura política controlada pelo regime autoritário, passando pela Abolição como dádiva de princesa e pelos direitos trabalhistas concedidos pelo Pai dos Pobres. Comportem-se para que o progresso social venha por si mesmo, insurjam-se para que o progresso seja interrompido – esta é a moral da nossa história.
Ocorre que a trajetória encoberta pelo cortejo triunfal do progresso não deixa – exceto a quem cultive com todas as forças o dom da ingenuidade – qualquer perspectiva de paz no futuro. A violência institucionalizada não é uma particularidade nossa, mas a consciência persistentemente tranquila diante dela talvez seja, pois o que mais impressiona em tudo isso é que ainda nos vejamos como um “povo pacífico”. Acostumamo-nos a condenar a menor violência como forma de luta dos oprimidos, mas a toma-la como legítima quando parte dos opressores, por mais exacerbada que ela se torne. Na mitologia nacional, não somos apenas pacíficos, somos também acomodados, inertes, incapazes para a organização e para a ação política. Por isso a verdadeira Revolução não nos pertence: o indivíduo que inveja os ocupantes da praça Tahir e enche o peito para dizer que aqui o “povo” não se levanta por ser historicamente acovardado ou incapaz de pensar e agir politicamente é o mesmíssimo indivíduo que condena a priori qualquer mobilização ocorrida no Brasil. Em qualquer outra parte do mundo enxergamos revolucionários, rebeldes e mártires, aqui não enxergamos mais que desordens e badernas, estranhas à índole do brasileiro. Não se trata de uma patologia ou falha de caráter do indivíduo, mas de uma patologia social e da lenta construção do caráter de uma coletividade.
Nosso ponto é que a história do Brasil é contada como se não existisse, sob o cortejo de vencedores, uma tradição insurrecional dos oprimidos. Acontece que ela existe. E se o inimigo insiste tanto em apaga-la é porque a reconhece como uma ameaça. Este calendário insurrecional do Brasil tem por objetivo trazer à tona a participação popular e a violência, apagadas ou deturpadas na narrativa nacional.
Godinho, 1º de janeiro de 2012.
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