quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Instantâneos da primeira Primavera Brasileira IV - Um crime consumado pela metade.



Os primeiros condenados pelo principal processo da sedição cuiabana a serem punidos na forma da lei (muitos já vinham sendo punidos ilegalmente) foram enquadrados no Artigo 85 do Código Criminal de 1830 – aquele com o Artigo112 saudado pelos manifestantes em outro momento.
O que dizia este artigo?

“Art. 85. Tentar diretamente, e por fatos, destruir a Constituição Política do Império, ou a forma do Governo estabelecida. Penas - de prisão com trabalho por cinco a quinze anos.
Se o crime se consumar. Penas - de prisão perpetua com trabalho no grau máximo; prisão com trabalho por vinte anos no médio; e por dez anos no mínimo.”

A pena dos três condenados foi de prisão perpétua com trabalho, ou seja, todos em grau máximo por um crime consumado de tentar destruir a Constituição Imperial ou a forma de governo. O que se consumou, portanto, foi a tentativa. Se consumassem a destruição, não só não haveria crime a ser punido, derrubada a legalidade do Código e da própria Carta de 1824, como provavelmente teríamos estátuas dos réus no centro de Cuiabá.

A condenação em grau máximo, no caso, é por consumar um crime pela metade.

sábado, 24 de agosto de 2013

Instantâneos da primeira Primavera Brasileira III - Sobre classes e raças

Em meio à leitura do processo criminal da sedição cuiabana de 1834 tive como desafio entregar um artigo sobre sujeitos coletivos, classes sociais e raças. Parti de uma estratégia simples para abordar o tema:

a)     definir como as pessoas se identificavam politicamente na época (rótulos partidários, etc.),

b)      em seguida analisar, na medida do possível, a situação de classe (basicamente através de duas variáveis: ocupação/profissão e propriedade) e a classificação racial (segundo critérios da época, brancos, crioulos, pardos, mulatos, etc.) de cada um dos envolvidos nos “campos políticos” opostos.

c)      Interpretar as relações entre as identidades políticas no nível do discurso (liberais x caramurus, brasileiros x portugueses,guarda nacional x tropas regulares) e a situação de divisão em classes e raças,numa sociedade profundamente marcada pelos dois tipos de distinção (e de exploração/opressão)

A falta de dados não permitiu ir muito longe, mas algumas coisas chamaram a atenção já na etapa de análise de classes e raças. A primeira delas é que dentre os caramurus/portugueses mortos pelos rebeldes liberais/brasileiros apenas um não era proprietário de comércio, imóveis e/ou fazendas (era um assalariado, caixeiro de um comerciante chamado Domingos), e este sujeito, cuja morte é relatada muitas vezes, é também o único que não tem um nome. Em toda a documentação de centenas de páginas ele é “um caixeiro do Domingão”. Daí uma dificuldade elementar para a escrita da história dos grupos subalternos: às vezes quem não tem propriedade nem nome possui. Ser uma extensão de seu patrão não é algo que diz respeito apenas a escravos.

A segunda coisa que chamou a atenção é a presença de algumas lideranças não-brancas dentre os rebeldes – três descritos como “mulatos” e um como “pardo”. Lideranças que ocupavam cargos importantes, como vereador, oficial da guarda nacional e mesmo o único deputado geral (hoje diríamos “federal”) eleito pela província – e que foi um dos primeiros parlamentares brasileiros a propor a abolição da escravidão, mais de 50 anos antes da Lei Áurea. No processo, apenas réus não-brancos têm a cor descrita nos autos. Dentre os que não possuem esta indicação o índice de condenações foi de 41%, enquanto para “mulatos”e “pardos” foi de... 100%.  Após incriminações com base bastante suspeita, já nos últimos depoimentos surgem afirmações de que dois desses quatro haviam propagado dentre os “soldados e a canalha” (isto é, os pobres pretos e pardos) a ideia de que “os brancos já tinham governado” e que agora era a vez deles. Se o fizeram, temos uma clara tomada de consciência da opressão racial que estrutura aquela (e esta) sociedade. Se não o fizeram, temos mais um exemplo do uso da classificação racial para incriminar esses indivíduos. Afinal,  no discurso dominante quem racializa essa sociedade sem classificações são eles, os classificados como “pardos” e “mulatos”.

Espero que o restante da documentação torne mais claro esse tempo de caixeiros sem nome e pardos presumidamente culpados – um tempo, afinal, tão próximo do nosso.

PS: A história de pobres e pretos tem essas dificuldades todas, mas não é tão obscura se comparada à história da atuação das mulheres.Talvez eu venha a fazer um “instantâneo” desses sobre isso.

Instantâneos da primeira Primavera Brasileira II - Um capítulo da história do Estado de direito

A revolta cuiabana de 1834 foi planejada dentro de uma associação que contava com grandes proprietários da cidade, inimigos de outra parcela das classes dominantes. Poupino era uma das lideranças ricas por trás da revolta. Proprietário de 27 imóveis e 25 escravos, era a quinta pessoa na lista de sucessão do governo provincial (equivalente distante do "estadual" hoje). Nos meses que antecederam a revolta os que estavam à sua frente foram sucessivamente se afastando "por motivos de saúde", até que chegou sua vez. Dessas coisas absolutamente suspeitas, enfim... Ele assumiu o posto e em poucos dias uma revolta estourou e resultou na morte de muitos de seus adversários.

Simplificando um tanto as coisas, pode-se dizer que em parte a revolta era uma conspiração de parte dos grupos dominantes contra os que disputavam com eles o poder político e o mercado local. Mas apenas em parte, pois o ódio popular tinha outros tantos significados e os adversários do grupo de Poupino que morreram estavam em geral ligados a dois tipos de opressão ao povo pobre: o oficialato das tropas, objeto de uma política racista, que barrava a ascensão dos negros e pardos, e o monopólio do comércio, que especulava com coisas essenciais à sobrevivência. Mobilizados por poderosos para destronar outros poderosos, os setores populares tinham seus interesses e valores próprios e, como é comum acontecer nesses casos, logo o movimento rachou.

Poupino, que nos primeiros dias da revolta dava vivas à "revolução patriótica" passou a organizar uma contra-revolução (a expressão chega a aparecer nas fontes). Organiza petições a serem assinadas pelos "Amigos da Boa Ordem" em que pede apoio para punir os "vândalos" e "anarquistas" (sim, são palavras tiradas do processo-crime, de 1834-35). Com o pretexto de que seus aliados das classes populares deveriam ajudar a conter uma reação ao movimento no interior, ele pede que se dirijam para lá. Aproveita-se da ausência deles para dar início à traição, prendendo os que ficaram na cidade, com o apoio daqueles autointitulados "Amigos da Boa Ordem".

Com seus antigos aliados pobres na cadeia e após a chegada de um novo governante, que se torna rapidamente seu aliado, Poupino pode consolidar sua traição. Avisa alguns amigos por cartas para que saíssem da cidade para evitar a repressão e manda prender os demais. Mas tudo que ele não queria era um julgamento justo, pois se os "criminosos" depusessem diriam que Poupino era uma das lideranças do movimento. Evitando um julgamento, ele tentou convencer as demais autoridades a fuzilar sumariamente os presos, aos gritos de "Viva a Lei! Morram os Ladrões. [...]. Faça-se fogo a quem for suspeito!". Uns apoiaram, outros não, e ele teve de mudar de estratégia: mandou parte dos "criminosos" para fora da província, com ordem para que fossem soltos em Goiás, ou de preferência mais longe. Procedimento tão ilegal quanto o fuzilamento sumário.

Mas restavam outros presos (ilegalmente) que sabiam demais sobre o papel de Poupino nos distúrbios. Alguns juízes e promotores que passaram a ouvir o que eles tinham a dizer foram ameaçados de morte e, em seguida, presos. Ilegalmente, claro! O juiz e o promotor do caso acabaram sendo mandados para o Rio de Janeiro e penaram seis meses de viagem pelo Pantanal e por São Paulo, acorrentados. Eram acusados de serem cúmplices dos "ladrões", "vândalos" e "anarquistas".

E o que diziam esses presos? E o que fazia o presidente da província, maior autoridade do lugar, a respeito disso? Vamos às fontes:

"Durante essas vergonhosas cenas, os presos da cadeia gritavam em altas vozes que tudo tinha sido feito por insinuações de João Poupino (tudo isso quando o presidente por ali passava), que eles por serem pobres ali estavam, enquanto o mesmo Poupino, e outros estavam com as armas na mão, e passeavam livremente. O Presidente recolheu-se a sua casa, mandou chamar o juiz de direito, ordenando que os fizesse calar com rodas de pau!"

Fica aqui mais um capítulo da história do Estado de direito no Brasil.

Instantâneos da primeira Primavera Brasileira I - "Viva o Artigo 112 do Código Criminal"

No dia 4 de maio de 1834, quase um mês antes da eclosão de uma revolta violenta em Cuiabá, cerca de 200 pessoas se reuniram na praça matriz da cidade para protestar contra a nomeação de um funcionário pelo governo (resumidamente, por ser ele português e por ser acusado de corrupção e incompetência, sendo a função do cargo cuidar do dinheiro público). Até aí, nada de muito surpreendente, apesar de manifestações desse tipo serem pouco frequentes até então. O que surpreende é o grito de protesto que foi entoado na praça:

"Viva o Artigo 112 do Código Criminal!", gritavam os manifestantes.

Quando li isso fiquei intrigado.

Como assim manifestantes dão vivas a um artigo do Código Criminal? Como assim???

Bom, eis que eu vou para o Código Criminal, que acabava de ser aprovado naquele momento, e vejo que raios é esse artigo 112:

"Título 4 - Dos crimes contra a segurança interna do Império, e pública tranquilidade.
Capítulo 3 - Sedição [um tipo de crime político maior que o motim e menor que a rebelião]
Artigo 112 - Não se julgará sedição o ajuntamento do povo desarmado, em ordem, para o fim de representar as injustiças e vexações, e o mau procedimento dos empregados públicos"

Era a primeira vez na história do Brasil que uma lei dizia claramente que não era crime ocupar as ruas para se manifestar. O que aquelas pessoas estavam fazendo era afirmar seu direito legal a estar ali, desde que "em ordem". Mas a coisa não parou por aí e em menos de um mês o tal funcionário e dezenas de outros figurões de Cuiabá estariam mortos e seus comércios saqueados e destruídos. A manifestação não ficou "em ordem" e virou revolta violenta.

Muitos dos que deram vivas ao artigo 112 acabaram figurando entre as primeiras pessoas a serem julgadas e condenadas pelos demais artigos do título 4 do código - o dos crimes políticos. Um julgamento cheio de irregularidades e ao qual voltarei em outro momento. Em seguida seria a vez dos rebeldes da Cabanagem, da guerra dos Farrapos, da Sabinada, da Balaiada, etc. Só na Cabanagem fala-se em 40 mil mortos e é comprovado que cerca de 2 mil morreram apenas nos navios-prisão, de fome, sede, doença, pancada, enquanto aguardavam julgamento. Eles sequer tinham uma acusação formalizada, eram presos pelo "crime" de "ser cabano", ou seja, de ter traços indígenas e ser pobre.


Duvido que depois da década de 1840 outro ajuntamento de populares gritasse na rua qualquer saudação ao código criminal. O artigo 112 só parece libertário antes da aplicação do código, longe da realidade concreta, da exceção como regra.