sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

História Concisa de Nós Dois, Capítulo 3

Hoje, 6 de janeiro de 2012, quando completamos 3 anos e 1 mês, dou prosseguimento a meu presente de 3 anos de casamento.
Para ver os demais capítulos clique nos links: Prefácio e Capítulo 1 , Capítulo 2
André.
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Capítulo 3: Pelos bares de São Paulo II
Era uma sexta-feira, 31 de agosto de 2007. Estava marcado para aquela noite um encontro dos bolsistas e egressos do PET (Programa de Educação Tutorial) do curso de História da USP. Eu era um recém-egresso, tinha feito grandes amizades naquele grupo, tive grandes experiências de formação naquele espaço, conheci muitos lugares do Brasil nos encontros nacionais e regionais. E agora tínhamos mais um ButecoPET, uma espécie de atividade de extensão acadêmico-etílica que desta vez foi marcada num lugar que indiquei e que frequento até hoje. Trata-se do Bar do Ghassan, parte inseparável de nossa história e da história de nossos amigos. Por muito tempo teve a cerveja mais barata da Lapa (e de todos os bares que conhecemos em São Paulo) e até hoje tem empadas e outros salgados sensacionais e a preços módicos.
Dona Tereza, Ghassan e as empadas
Quando eu e a Carina fomos ao ButecoPET no Bar do Ghassan nos conhecíamos há pouco mais de três meses. Nesse meio tempo, fiquei sabendo que os planos de minha mãe de se mudar para o litoral - e, portanto, de eu passar a morar sozinho - estavam prestes a se concretizar. A recente mas intensa relação entre nós já influenciava os planos de futuro: se ia morar sozinho em breve, por que não levar a Carina comigo? E se era pra juntar os trapos, por que não casar de uma vez? Pensava nessas hipóteses, mas vagamente.
Ficamos no Ghassan até fechar, de lá fomos os mais empolgados para o Pezão, butecão 24 horas no submundo da Lapa de Baixo, que também frequentamos até hoje e que fica na rua onde moramos desde 2008. Estávamos todos embriagados, nos fundos de um dos butecos mais toscos que já conheci, ao som dos meus amigos do PET cantando Tim Maia num Karaokê eletrônico, quando puxei a conversa sobre a mudança da minha mãe, minha ida pra um apartamento, como seria bom se a Carina fosse morar comigo e já que ia morar lá se não seria melhor formalizarmos isso... Fui falando essas coisas pra ela, até que ela me interrompeu e perguntou:
_ Espera aí, você tá me pedindo em casamento?
_ Acho que tô.
_ Então eu aceito!
Começamos os dois a rir da situação. Nesta hora, olhei para os amigos na mesa e falei: "Pessoal, acabo de pedir a Carina em casamento e ela aceitou!" Lembro até hoje da expressão de espanto de um deles. Fizemos alguns brindes, seguimos no Karaokê e na cerveja até alta madrugada. No dia seguinte, escrevi para a lista de e-mails do PET (clique para ampliar):
O lançamento em questão era do Paraíso Sem Nós Dois e o Bar da Suely (que foi uma das locações do filme) é outra instituição que marcou época. Localizado na Vila Leopoldina, oferecia churrasco grátis toda sexta-feira e porções e caldos também na faixa, em dias aleatórios, de acordo com o humor da Dona Suely. Lá anunciamos a todos os amigos que estávamos noivos. A reação foi, mais uma vez, de espanto. Como um casal que se conhecia há três meses e namorava há dois já estava falando em casamento? Diversos amigos vieram falar comigo, preocupados com uma possível decisão precipitada, já que a experiência de outros desaconselhava uma loucura dessas. O mesmo aconteceu com a Carina. Se algum amigo fizesse o que fizemos eu reagiria da mesma forma, afinal dois malucos que acabaram de se conhecer e que querem casar é algo pra se preocupar... Mas mantivemos a decisão e, cerca de um ano depois, quando eu já estava organizando a mudança para o apartamento, marcamos a data – 6 de dezembro de 2008.
Decidimos fazer uma cerimônia civil e um almoço para a família, seguida de uma grande festa para os amigos. Procuramos um sítio com lugares para todos pudessem dormir por lá e achamos o local perfeito, com isso e muito mais. Convidamos os padrinhos e madrinhas e chamamos o Baccega para realizar uma cerimônia laica (ou “mais ou menos laica”, como ele a definiu). Pensamos em bandas para animar a festa e, num desses acasos, conhecemos os Pinguins Tropicais numa festa da USP, tocando a trilha sonora de O Poderoso Chefão em versão ska. Fantástico! Finalmente, fizemos os convites e começamos a distribuí-los.
Um relacionamento que começou numa festa da ocupação, ganhou intensidade no Bar do Pedrão, se desenvolveu no Bar do Ghassan, se tornou um noivado no Bar do Pezão, sendo anunciado no Bar da Suely, só poderia ser coroado com uma festa e um convite à altura. Foi assim que chegamos ao seguinte formato, síntese de uma parte essencial da história de nós dois:

domingo, 1 de janeiro de 2012

Calendário Insurrecional do Brasil - Apresentação

O Brasil foi construído por meios violentos. Em nossa história, já se dizia mais de trezentos anos atrás, "os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o edifício”. A apropriação da terra, com a expansão das fronteiras de colonização, se fez e se faz, do século XVI ao XXI, por meio da expulsão, incorporação forçada ou extermínio dos povos indígenas. O mundo do trabalho foi por mais de três séculos dominado pela escravidão, ou seja, pela permanente possibilidade de recurso à violência. A unidade política do país foi resultado de negociações e de conflitos sangrentos, com vitórias das forças do Estado sobre movimentos que iam de pequenos ajuntamentos a imensas guerras civis, com importante participação popular e um saldo de milhares de mortos. Nossos quase dois séculos como nação independente são uma incessante acumulação de escombros, história de grandes e de pequenas lutas, tragédia de grandes e de pequenos massacres, farsas dos que, conscientemente ou não, vivem de apagar os rastros da barbárie para melhor legitimar a civilização que a produz.

Não contamos os eventos sangrentos como glórias do passado. Eles raramente frequentam nossa memória histórica e mesmo nestes casos apenas como acidentes de percurso ou dolorosas mas inevitáveis eliminações de entraves ao progresso. Aprendemos a ver a história do Brasil como uma linha evolutiva pontuada por eventos supostamente pacíficos. Um “descobrimento” amistoso, uma Independência como “desquite amigável” ou “acordo de elites”, uma proclamação da república à qual o povo assistiu “bestializado”, duas ditaduras implantadas sem resistência imediata e derrubadas sem uma insurreição popular, sendo a oposição aberta ao autoritarismo obra de grupos isolados – “idealistas”, quando não “terroristas”. Avanços nos direitos e na cidadania vêm invariavelmente de cima para baixo: da primeira constituição, oferecida pelo Imperador, à última, fruto de uma abertura política controlada pelo regime autoritário, passando pela Abolição como dádiva de princesa e pelos direitos trabalhistas concedidos pelo Pai dos Pobres. Comportem-se para que o progresso social venha por si mesmo, insurjam-se para que o progresso seja interrompido – esta é a moral da nossa história.

Ocorre que a trajetória encoberta pelo cortejo triunfal do progresso não deixa – exceto a quem cultive com todas as forças o dom da ingenuidade – qualquer perspectiva de paz no futuro. A violência institucionalizada não é uma particularidade nossa, mas a consciência persistentemente tranquila diante dela talvez seja, pois o que mais impressiona em tudo isso é que ainda nos vejamos como um “povo pacífico”. Acostumamo-nos a condenar a menor violência como forma de luta dos oprimidos, mas a toma-la como legítima quando parte dos opressores, por mais exacerbada que ela se torne. Na mitologia nacional, não somos apenas pacíficos, somos também acomodados, inertes, incapazes para a organização e para a ação política. Por isso a verdadeira Revolução não nos pertence: o indivíduo que inveja os ocupantes da praça Tahir e enche o peito para dizer que aqui o “povo” não se levanta por ser historicamente acovardado ou incapaz de pensar e agir politicamente é o mesmíssimo indivíduo que condena a priori qualquer mobilização ocorrida no Brasil. Em qualquer outra parte do mundo enxergamos revolucionários, rebeldes e mártires, aqui não enxergamos mais que desordens e badernas, estranhas à índole do brasileiro. Não se trata de uma patologia ou falha de caráter do indivíduo, mas de uma patologia social e da lenta construção do caráter de uma coletividade.

Nosso ponto é que a história do Brasil é contada como se não existisse, sob o cortejo de vencedores, uma tradição insurrecional dos oprimidos. Acontece que ela existe. E se o inimigo insiste tanto em apaga-la é porque a reconhece como uma ameaça. Este calendário insurrecional do Brasil tem por objetivo trazer à tona a participação popular e a violência, apagadas ou deturpadas na narrativa nacional.

Godinho, 1º de janeiro de 2012.

Calendário Insurrecional do Brasil - Apresentação

O Brasil foi construído por meios violentos. Em nossa história, já se dizia mais de trezentos anos atrás, "os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o edifício”. A apropriação da terra, com a expansão das fronteiras de colonização, se fez e se faz, do século XVI ao XXI, por meio da expulsão, incorporação forçada ou extermínio dos povos indígenas. O mundo do trabalho foi por mais de três séculos dominado pela escravidão, ou seja, pela permanente possibilidade de recurso à violência. A unidade política do país foi resultado de negociações e de conflitos sangrentos, com vitórias das forças do Estado sobre movimentos que iam de pequenos ajuntamentos a imensas guerras civis, com importante participação popular e um saldo de milhares de mortos. Nossos quase dois séculos como nação independente são uma incessante acumulação de escombros, história de grandes e de pequenas lutas, tragédia de grandes e de pequenos massacres, farsas dos que, conscientemente ou não, vivem de apagar os rastros da barbárie para melhor legitimar a civilização que a produz.

Não contamos os eventos sangrentos como glórias do passado. Eles raramente frequentam nossa memória histórica e mesmo nestes casos apenas como acidentes de percurso ou dolorosas mas inevitáveis eliminações de entraves ao progresso. Aprendemos a ver a história do Brasil como uma linha evolutiva pontuada por eventos supostamente pacíficos. Um “descobrimento” amistoso, uma Independência como “desquite amigável” ou “acordo de elites”, uma proclamação da república à qual o povo assistiu “bestializado”, duas ditaduras implantadas sem resistência imediata e derrubadas sem uma insurreição popular, sendo a oposição aberta ao autoritarismo obra de grupos isolados – “idealistas”, quando não “terroristas”. Avanços nos direitos e na cidadania vêm invariavelmente de cima para baixo: da primeira constituição, oferecida pelo Imperador, à última, fruto de uma abertura política controlada pelo regime autoritário, passando pela Abolição como dádiva de princesa e pelos direitos trabalhistas concedidos pelo Pai dos Pobres. Comportem-se para que o progresso social venha por si mesmo, insurjam-se para que o progresso seja interrompido – esta é a moral da nossa história.

Ocorre que a trajetória encoberta pelo cortejo triunfal do progresso não deixa – exceto a quem cultive com todas as forças o dom da ingenuidade – qualquer perspectiva de paz no futuro. A violência institucionalizada não é uma particularidade nossa, mas a consciência persistentemente tranquila diante dela talvez seja, pois o que mais impressiona em tudo isso é que ainda nos vejamos como um “povo pacífico”. Acostumamo-nos a condenar a menor violência como forma de luta dos oprimidos, mas a toma-la como legítima quando parte dos opressores, por mais exacerbada que ela se torne. Na mitologia nacional, não somos apenas pacíficos, somos também acomodados, inertes, incapazes para a organização e para a ação política. Por isso a verdadeira Revolução não nos pertence: o indivíduo que inveja os ocupantes da praça Tahir e enche o peito para dizer que aqui o “povo” não se levanta por ser historicamente acovardado ou incapaz de pensar e agir politicamente é o mesmíssimo indivíduo que condena a priori qualquer mobilização ocorrida no Brasil. Em qualquer outra parte do mundo enxergamos revolucionários, rebeldes e mártires, aqui não enxergamos mais que desordens e badernas, estranhas à índole do brasileiro. Não se trata de uma patologia ou falha de caráter do indivíduo, mas de uma patologia social e da lenta construção do caráter de uma coletividade.

Nosso ponto é que a história do Brasil é contada como se não existisse, sob o cortejo de vencedores, uma tradição insurrecional dos oprimidos. Acontece que ela existe. E se o inimigo insiste tanto em apaga-la é porque a reconhece como uma ameaça. Este calendário insurrecional do Brasil tem por objetivo trazer à tona a participação popular e a violência, apagadas ou deturpadas na narrativa nacional.

Godinho, 1º de janeiro de 2012.