segunda-feira, 29 de março de 2010

Vale dizer...

Conheci o István no início de 2002. Era o Professor István, de História do Brasil Colonial, com uma classe de quase cem alunos, a grande maioria calouros como eu. Tal experiência poderia ser descrita por qualquer um daqueles estudantes – e pelas diversas turmas que nos precederam e nos sucederam. Afinal, quantos não se lembram das explicações sobre o cabedal do senhor de engenho na obra de Antonil, o sentido da colonização em Caio Prado Jr. ou o rateio do butim colonial, num complicado texto de Florestan Fernandes? Mas não apenas isso, pois entre a discussão de fontes e as exposições com teor mais conceitual - e entre o enrolar e o acender dos cigarros, no tempo em que ele ainda fumava -, sempre havia espaço para narrativas interessantes, e freqüentemente divertidas. Quem desses alunos nunca ouviu o relato da viagem com as moças uspianas para Ouro Preto, ou um diálogo inusitado ocorrido num jipe em Catolé do Rocha, sertão da Paraíba, ou as histórias do canto do curió, e tantas outras narrativas, que muitas vezes começavam com “porque na Bahia, no meu tempo...”?

Mas o Professor será lembrado por tantos e tantos alunos não apenas pela sala de aula. Sempre pronto a atender os estudantes, dispunha-se a falar sobre trabalhos, textos, aulas, pesquisas, mas também sobre expectativas, dificuldades e dilemas que fazem parte da trajetória de cada jovem que ingressa na universidade. E conversávamos sobre história, literatura, cinema, política, viagens, futebol e tudo o mais que seja do gosto de quem gosta da vida. Quantas vezes pude presenciar a visita de ex-alunos, que o procuravam em sua sala não para falar de projetos de pesquisa, mas para conversar sobre a vida? Quantas vezes não iam dizer que os conselhos do professor para que seguissem o que realmente gostavam de fazer tinham dado os primeiros frutos? Dentre eles encontramos os que se dedicam à atividade docente, os que seguiram a carreira acadêmica em outras áreas, os que foram para arquivos e museus, os músicos, os cineastas... Só o que não há é gente que aceita menos que a conjugação de realização pessoal e ética pública, gente que ache que “o negócio é comer com coentro”. Por tudo isso, nesses oito anos de experiência no meio universitário nunca vi nada semelhante à relação do professor István com a graduação. Não é exagero dizer que há uma multidão de alunos que vivem hoje algo semelhante à orfandade.

Ainda em 2002, conheci o pesquisador István Jancsó, primeiro lendo seus trabalhos, depois acompanhando as etapas da pesquisa e da redação de alguns de seus textos mais recentes. O historiador deixa contribuições inestimáveis para a historiografia brasileira, em especial quanto à questão nacional. Mas deixando um pouco de lado sua obra, cuja relevância é tarefa da historiografia avaliar, lembremos que o pesquisador István nos deixa outros legados, na criação e coordenação de espaços de interlocução e na formação de pesquisadores. As iniciativas de trabalho coletivo acompanharam toda sua trajetória docente, desde os tempos da Bahia, passando pela criação do PET-História da USP, além de diversos grupos de Iniciação Científica. Finalmente, a criação e coordenação de um projeto temático desde 2003 foi a faceta mais visível de um princípio que permeava toda a sua prática. Tantos quantos participaram dessas experiências poderiam descrevê-la. Fossem os grupos de orientandos, discutindo textos e documentos, colocando em debate seus próprios trabalhos e aprendendo que “o exercício da crítica acadêmica não envolve a honra da família”; fosse o ecúmeno abrigado institucionalmente pelo projeto temático, espaço por si só impensável sem sua presença.

Além dos espaços coletivos, o historiador deixa outro legado – e outros tantos “órfãos” – dentre seus orientandos. Qualquer um deles poderia narrar tais experiências de formação. Um orientador que tive a felicidade de conhecer em 2003 e que esteve sempre presente, pronto a oferecer sua leitura cuidadosa, suas críticas e sugestões fundadas na exigência de rigor teórico e metodológico, sua compreensão nos momentos de dificuldades. Para mim, nada foi mais importante como experiência de formação que as discussões teóricas com o Professor. Com ele aprendi, na prática, que “nada é mais operacional que a boa teoria”. Mas aliada a esta preocupação estava a das tecnicalidades do ofício, como ele gostava de dizer. Quando entrei na Iniciação Científica, intercalávamos a redação e discussão de textos com afazeres técnicos. Era um tal de fazer tabelas, gráficos, bancos de dados, cronologias, mapas... A certa altura eu estava achando que aquele material todo excedia o que era necessário para os objetivos imediatos da pesquisa. Por um momento questionei sua utilidade. Até que a ficha caiu, quando percebi que não só tinha me tornado capaz de fazer todo tipo de instrumento de pesquisa, como que os fazia quase que por reflexo quando assim demandavam as questões da investigação. Era um aprendizado, através do qual me dei conta de que tanto quanto a teoria, as técnicas do trabalho empírico fazem parte de uma experiência de formação.

E ainda no campo das tecnicalidades, lembremo-nos que o István estava também numa incessante busca pela incorporação das novidades tecnológicas à pesquisa histórica. Maior exemplo disso é a Biblioteca Brasiliana, sua menina dos olhos, que resultou em boa parte de sua dedicação, desde o primeiro contato com José Mindlin até o trabalho junto aos profissionais da equipe de implantação. Funcionários e estagiários que estão também um pouco órfãos. Mas além deste projeto, importa lembrar que o interesse do Professor vinha de longa data. Foi ele o pioneiro do uso de um computador na Federal da Bahia, no início dos anos 70, quando – dizia ele – ainda usava-se guarda-pós brancos para “entrar” no computador que ocupava todo um andar. Lá dentro, mantinha-se um silêncio tal que a impressão que ficava era a de se estar num espaço sagrado. No último curso que ministrou na USP, em 2008, foi mais uma vez pioneiro, agora em oferecer a apostila, com todos os textos e documentos, em CD-Rom. No mesmo curso, reservou uma das aulas para uma apresentação dos instrumentos digitais de pesquisa – bases de dados, catálogos eletrônicos, revistas e bibliotecas virtuais, etc. Não deixa de ser irônico que o maior incentivo ao uso de ferramentas tecnológicas no Departamento (ao menos dentre os cursos que conheci) tenha vindo de um de seus professores mais velhos.

Professor, pesquisador, promotor do trabalho coletivo e da incorporação da tecnologia à historiografia, o István também era um militante por um socialismo democrático. Obviamente não o conheci nos momentos decisivos de sua atividade política, entre a conjuntura do golpe de 64 e a chamada “redemocratização” nos anos 80. Ainda assim, pude aprender muito com o experiente militante, em especial nos momentos em que a política universitária trazia a discussão, como foi o caso da ocupação da reitoria, em 2007. Dessas conversas guardo, em primeiro lugar, sua insistência na relação entre teoria e prática, importante tanto para que a elaboração intelectual não seja dissociada da realidade social, quanto para que o fazer política não seja uma prática irreflexiva. Em segundo lugar, o respeito à diversidade e à divergência de projetos políticos, numa profunda convicção na democracia, entendida como muito mais que simplesmente ter parte em eleições. “Tudo é negociável, menos os princípios” e seus princípios tinham por base um socialismo democrático, incompatível com os tanques de guerra, fossem os que ele viu em plena Avenida Nove de Julho, em 1964, fossem os que a URSS mandara para a Hungria, oito anos antes.

E havia ainda o amigo István, com quem pude ter toda a amizade que é possível existir entre pessoas separadas por um abismo geracional de quase meio século. Nos oito anos de cursos, orientações, trabalhos conjuntos, monitorias e conversas de todo tipo, não sei pontuar cronologicamente quando foi que conheci a amizade do professor. O trato pessoal, marcado pela integridade, respeito e uma generosa dose de bom humor, é certo que muitos conheceram naquela movimentada sala no Departamento de História, por onde passaram diversos grupos de estudos, onde foram discutidos trabalhos e seminários, onde tantos aprenderam tanto. No mural da sala havia um desenho feito a caneta numa folha de caderno. Era o professor retratado como o personagem Mestre dos Magos do desenho animado Caverna do Dragão, decerto obra de algum aluno mais engraçadinho, exposta por um professor que levava sério o que era sério e sabia rir de todo o resto.

Alguém que sabia viver, ainda que com as limitações que cada vez mais se impunham. Conhecedor do Brasil como poucos, já viajava pouco, mas me incentivou de tal forma a fazê-lo que em certo momento teve de me aconselhar a parar um pouco em São Paulo, pra não achar que vida de historiador é só vagar por aí... Infelizmente não o pude conhecer nos tempos de boêmio e só por duas vezes tive o prazer de dividir com ele algumas cervejas. Pelas suas histórias, deve ter sido, para os de sua época, um grande parceiro de bebedeira. Durante seu último curso na graduação, em 2008, quando falei que já conhecia alguns alunos porque íamos ao mesmo boteco, disse que ficava feliz em saber que os estudantes ainda freqüentavam este tipo de instituição.

Enfim, não são poucas as esferas da vida que foram profundamente afetadas pela sua partida e não são poucos os que se sentem um pouco órfãos nesses últimos dias. Professor, historiador, coordenador de diferentes projetos, socialista, amigo, o István será certamente lembrado por muita gente por essas e outras coisas. Mas de tudo isso, é aquela primeira imagem, a do professor, a que me vem insistentemente à memória. O professor István, que recebia seus alunos com solicitude, respeito, bom humor, café e bolachas. Aquele que fazia mais do que exigia formalmente o emprego, pois acreditava profundamente que aquilo era mais que um modo de ganhar a vida: era um serviço que se prestava ao público, um imperativo ético. Aquele que certa vez ficou desconcertado com a pergunta de uma aluna que queria saber como poderia se tornar uma boa intelectual. Após uma breve reflexão, respondeu: “Leia e viva - porque as pessoas lêem, mas vivem pouco.” Talvez esta seja a lição que mais merece ser guardada.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Primeiro post

Estou enrolando há anos pra criar um blog. Demorei tanto que nem sei se as pessoas continuam escrevendo e lendo blogs como antigamente. Sei que tem o tal do Twitter agora, mas ele me parece uma coisa limitada e meio preguiçosa. Pelo que vi, limita-se a umas poucas linhas com notícias, máximas, impressões, estados de espírito. Não tenho absolutamente nada contra a preguiça. Afinal, se tivesse, este blog existiria há vários anos. Só estranho a produção de conteúdos escritos sem espaço para qualquer construção narrativa, descritiva ou argumentativa. Decerto é preconceito de velho de 27 anos e, talvez, pura e simples ignorância. São coisas com funções diferentes, não tem mesmo muito porque comparar.

O que importa é que, visitando alguns blogs recentemente, vi que eles ainda podem ter muito a dizer. Um incentivo pra retomar uma antiga idéia. Mas, na verdade, foi o vazio trazido pela perda de uma das pessoas mais importantes que tive na vida que trouxe a necessidade, quase desesperada, de escrever neste momento. Seguindo o conselho de uma professora, passarei uns dias longe da minha dissertação. Assim sendo, parece um bom momento para finalmente inaugurar um blog. Não defini temática nenhuma. Vou escrever o que interessar em cada momento e depois de algum tempo faço uma descrição do conteúdo. É certo que vou falar de história, de filmes, de política, e é certo que vou fazer piadas. Mas o primeiro post não poderia deixar de ser uma homenagem a István Jancsó, que fico devendo para os próximos dias.