domingo, 5 de agosto de 2012

Outro grito da periferia: punk e identificação com o opressor

Em artigo publicado no ano de 1999, a psicanalista Maria Rita Kehl fez uma incursão nas letras dos Racionais MCs, então em evidência com o álbum Sobrevivendo no Inferno (1997). À parte da interessante análise das letras de rap, a autora lançou alguns juízos sobre o punk, movimento também oriundo das periferias das metrópoles. A comparação entre a sociabilidade e valores de rappers e punks é pertinente e poderia levar a alguns questionamentos sobre os alcances e limites das contestações ligadas às culturas jovens, urbanas e periféricas. 
Neste breve post não discuto o rap, apesar de ser o tema central do artigo e o que me levou a buscar sua leitura. Comento apenas algumas passagens sobre o punk que me incomodaram profundamente, pois para quem vivia nesta cena à época da publicação, as afirmações são hoje sentidas não apenas como sendo falsas, mas também ofensivas.  Não se trata de censurar a autora por alguns parágrafos de um texto de 13 anos atrás, afinal reconheço sem qualquer ressalva a qualidade de seus escritos e de sua atuação no espaço público. Entendo que hoje ela é uma das vozes mais lúcidas no debate político brasileiro, seja na universidade, na imprensa ou em outros espaços. E o incômodo vem precisamente do fato de a autora ter (e creio que já tinha à época) todas as condições para compreender a natureza do movimento punk de São Paulo naquele momento. Antes de seguir, copio uma passagem, grifando o que a meu ver é o juízo mais infeliz do texto. Trata-se de um contraponto à narrativa que abre o artigo, sobre a presença dos rappers num comício de 1º de maio de 1999:

“Há 17 anos, a grande festa petista de encerramento da campanha da primeira candidatura do Lula em 1982, daquela vez ao governo de São Paulo, contou com a presença estranha, espontânea, não necessariamente politizada, mas talvez em busca de alternativas, de vários punks da periferia. Sem liderança, desorganizados, os punks fizeram um certo “turismo revolucionário” em volta do PT, que não sabia o que fazer com eles. Seis anos depois, num melancólico e esvaziado 1o de maio de 1988 na praça da Sé, via-se um grupo de punks, já então aderidos a um patético neonazismo, cruzar a praça em atitude ameaçadora, procurando briga. Viraram inimigos da esquerda, truculentos, racistas. Buscaram reconhecimento – isto que todo jovem busca, mas que os pobres precisam lutar muito mais para obter – identificando-se com o opressor. Arrogância, racismo, violência física; os punks marcaram sim sua presença na cidade, mas não foram capazes de superar a condição subjetiva de sua alienação. Tudo o que conseguiram fazer foi passar adiante, para cima de outros garotos ainda mais frágeis do que eles, a humilhação que se recusavam (com razão) a sofrer.”

Maria Rita Kehl descreve uma cena que talvez tenha presenciado em 1988 e que é perfeitamente verossímil naquele contexto. Porém, sem qualquer ressalva, conclui que o punk havia se tornado de uma vez (e se não para sempre, até aquele momento) arrogante, racista, violento, alienado e identificado com o opressor.
Sem dúvida o punk sempre teve algo de arrogante e violento, e pela mesma razão que o rap. Em comum essas culturas que surgiram marginais não reagiram à arrogância e violência com as quais conviviam oferecendo a outra face. O Pânico em SP dos Inocentes e o Pânico na Zona Sul dos Racionais surgiram de contextos semelhantes – o do Suburbio Geral do Cólera, a Periferia, que é Periferia (em qualquer lugar)
Há diferenças importantes, claro, e percebo isso nas conversas com quem vivia na cena rap nesta época. A composição de classe do punk era mais variada, sua ligação com as comunidades quase nula, além de ser um movimento bem menor e menos organizado. Conheci gente rica, inclusive punk que largou o conforto de um apartamento de luxo pra viver em ocupações e nas ruas do centro de São Paulo. Mas a grande maioria dos que faziam o movimento era gente das periferias. Foi ao encontrar pessoas que ia conhecendo nos sons que visitei pela primeira vez algumas favelas das zonas oeste e norte – pontos distantes de Prituba, Osasco, Jaraguá, Perus, Taipas, Vila Nova Cachoeirinha, etc. Era na periferia que pulsava o punk, ainda que mostrasse a cara com maior freqüência no centro e em alguns bairros – como a Lapa, onde nasci e morei por quase 30 anos.
O problema da passagem citada está em duas supostas características do punk que me reviraram o estômago. Quando li, interessado na análise dos Racionais, pensei imediatamente: "peraí, então quer dizer que a gente era um bando de racistas identificados com os opressores?" Pois foi exatamente entre 1999 e 2001 que vivi mais intensamente a cena punk de São Paulo. E reconheço: muitas vezes violento, geralmente (mas nem sempre) desorganizado, freqüentemente expressando uma visão ingênua das contradições sociais, o punk tinha muitos defeitos. Eu mesmo apanhei de punk a troco de nada, acho que em 2000. Pois existiam sim gangs que caçavam encrenca, como também ocorriam episódios mais violentos, espancamentos, por vezes mortes, principalmente em confrontos com carecas. A desorganização, por sua vez, era relativa. Durante algum tempo atuei em espaços razoavelmente organizados de militância que tinham surgido do diálogo entre punks – especialmente um coletivo anarquista em Pirituba e uma ação de atendimento de moradores de rua entre a Barra Funda e a Santa Cecília. Podem ser iniciativas quase sem efeito prático na sociedade, mas o fato é que foram as primeiras experiências de organização política e social não só para mim, mas para muitos que viveram aquela cena e que hoje vejo atuantes por toda parte, inclusive nos espaços criados pelo rap. 
Mais do que isso: hoje percebo que entrar para o universo da prática política pela via do punk permitiu que as pessoas retirassem a aparência de naturalidade que encobre a organização vertical e burocratizada de partidos, sindicatos e outras organizações e movimentos. A forma de organização típica do punk, o coletivo autogestionado, é uma experiência que desnaturaliza a hierarquia, a representatividade, a burocracia. É um aprendizado que, na minha opinião, não aliena. O que aliena é entrar para a militância na adolescência através de um partido sectário, de um sindicato pelego ou de uma ONG corrupta. A maior limitação do punk estava numa certa ingenuidade na compreensão do funcionamento da sociedade e do Estado, o que se explica em boa parte pela juventude da imensa maioria. Estávamos todos experimentando a política sem mediação de líderes, representantes ou guias, o que vale mais do que ter respostas prontas para os dilemas do mundo.
Portanto, havia sim muito o que criticar no punk, inclusive se contraposto ao rap. Ocorre que dentre os muitos problemas do movimento não estavam o racismo ou outras formas de discriminação aberta, e menos ainda a identificação com o opressor. Claro que preconceitos existem em todos os ambientes e se manifestam onde menos se espera. Porém - e este é o ponto crucial para se entender o movimento - é parte da própria identidade do que é ser punk enfrentar os militantemente intolerantes. Se era assim nos anos 80 ou se é assim hoje não sei, ainda que tenha alguns palpites. Em 1999, quando o artigo foi redigido, era assim: quem manifestasse racismo ou homofobia num evento era confrontado, podendo até ser agredido.  E mais ainda: os grupos que atacam negros, nordestinos, homossexuais, travestis, etc. só encontravam um inimigo minimamente organizado nas ruas, e este inimigo era o movimento punk. Daí os confrontos violentos entre punks e carecas, que aliás se expunham menos do que hoje, talvez por medo de seus inimigos declarados.  Além de uma afirmação identitária de ambos os lados, este confronto expressa sim uma distinção política.
Nunca nos colocamos do lado do opressor, nunca fomos os responsáveis por ataques motivados por racismo ou homofobia, até porque tudo isso era o avesso da nossa identidade, era parte da identidade do inimigo, o “careca”, o “fascista”, o “white power”.  Talvez a autora tratasse esses dois pólos antagônicos como uma massa indistinta, prática comum na grande mídia por exemplo. Mas acho mais provável que a cena vista no comício de 1988 de fato partiu um grupo intolerante identificado como punk num contexto bastante distinto daquele de 11 anos depois, e que ela não procurou descobrir o que havia mudado no punk desde então. Só o que digo aqui – sem em nenhum momento desmerecer a análise de Maria Rita Kehl sobre o rap, ainda que sobre ela tenha algumas ressalvas -, é que a identificação com o opressor não existia no movimento e era sua própria negação.  Para perceber isso basta deixar rodar o álbum mais ouvido dentre os punks de São Paulo quando o artigo foi escrito – Caos Mental Geral, da banda Cólera (1998). Deixo o link de uma música que foi a principal trilha sonora da cena punk daquele ano. Acho que ela diz mais do que posso dizer sobre os valores que partilhávamos.



Deixo ainda a recomendação de que, ao contrapor duas formas de expressão da juventude das periferias, sejam adotados critérios idênticos: se os rappers são analisados pelas letras, analisemos os punks também por elas. Garanto que o rap só sai engrandecido com a comparação. Só não julguemos toda uma coletividade pelo comportamento de um pequeno grupo num comício de mais de 10 anos antes. Se tem uma coisa que todo movimento tem em comum é a presença de gente idiota.

A conclusão aqui é simples e modesta: mesmo sem a mesma força e organização do rap, e mesmo sem a mesma profundidade da crítica dos Racionais o punk não deixava de ser um grito da periferia contra situações semelhantes. Grito que negava intransigentemente e por vezes violentamente a discriminação e a identificação com o opressor.

Um comentário:

  1. história que conheço deste primeiro de maio é outra. Foi quando os whitepowers perseguiram os punks no primeiro de maio e acabaram encarando os operários no primeiro de maio, hegemonicamente nordestinos e tomaram a piaba do século e, desde então, por alguns outros anos, o primeiro de maio dos punks foi junto com o dos operários após quebrarem alguns bancos do entorno. Isso dizia um pessoal que era do movimento no começo dos anos 80. Não sei se é totalmetne factível,mas sei que os punks não iam xingar os operários de nordestinos, sendo, na época, da perifa mesmo e muitos descendentes de nordestinos, assim como vários companheiros do movimento sindical me contaram a história rediviva do tempo em que os whitepowers foram encarar o movimento sindical - e entre eles alguns peões destacados para a segurança, se é que me entende. Acho mais provável que ela, por ser pouco conhecedora do que sejam tanto punks quanto operários na época, tenha considerado tudo a mesma coisa.

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