domingo, 20 de novembro de 2011

Em nome da Legalidade, Parte 3: História do Pacto Social no Brasil.

Nós, Legalistas Coerentes, após formularmos um primeiro programa e reconhecermos os seus equívocos, estamos de volta para tratar de uma questão importante: a história do pacto social em nosso país.

Entendemos que a Legalidade está acima de tudo, mas ela só vale se fundamentada na soberania de uma nação, que é instituída através de um pacto social. Ou seja, quando o Estado é constituído “pela união dos seus poderes”, pois nesta forma de soberania, “o poder é de vocês” (PLANETA, Capitão, 1990).

Como sabemos, a ordem legal fundada na soberania nacional foi instituída no Brasil pela Constituição de 1824, esta sim legalíssima, pois resultado de um pacto originário dos cidadãos. O golpe de 15 de novembro de 1889, que levou a sua supressão, foi uma afronta às Leis. Graças a um pequeno erro tipográfico do século XIX, vivemos desde a proclamação da República uma série de rupturas na Legalidade, como veremos na quarta e última parte desta série. Por ora, tratemos do Pacto Social de 1824.

1 - O Pacto Fundador (1822-1824)

A história do pacto social no Brasil começa com a convocação de uma Assembleia Constituinte, em 13 de junho de 1822. No dia 3 de maio do ano seguinte, reuniram-se quase cem deputados, escolhidos através de eleições indiretas por um conjunto de eleitores que incluía um bocado de gente, estando excluídos apenas os escravos, os indígenas, as mulheres e os que fossem pobres. Também não estavam representadas as províncias que não haviam aderido à Independência, como o Pará e o Maranhão, que se juntaram livremente ao Brasil no decorrer daquele ano, ainda que os canhões apontados por almirantes estrangeiros possam ter contribuído um pouco para esta feliz decisão.

A Constituinte de 1823 foi dissolvida a 12 de novembro sob ameaça armada do Imperador. D. Pedro avisou que aceitara o título de Imperador Constitucional, porém que tal Constituição deveria ser digna do Brasil e dele mesmo. Nada mais justo. Meses depois da dissolução, o pacto social era redigido por 10 representantes da nação escolhidos numa eleição livre sem qualquer indício de irregularidade, cujo único eleitor era D. Pedro I. O Imperador elaborou e preencheu a cédula eleitoral, colocou seu voto numa urna, em seguida a abriu e apurou os votos. Um processo impecável.

Para que fosse uma emanação legítima da soberania do povo brasileiro, o Imperador ainda submeteu o texto constitucional ao juramento das câmaras municipais de todo o país. As câmaras eram escolhidas pelos “homens bons”, que deveriam ter propriedades, além de pureza de sangue. Para ser “homem bom” também era cobrado que o indivíduo nunca tivesse exercido um trabalho manual. Nada mais correto, afinal quem representa melhor a nação brasileira que homens supostamente não-miscigenados, com propriedades e que nunca trabalharam? É só se perguntar quem no Brasil atual não se identifica com um Chiquinho Scarpa, por exemplo. Esta é a cara do Brasil!

2 – Os horrores do ilegalismo (1824-1889)

Apesar da estrita legalidade do processo, alguns se recusaram a assinar o contrato. Este foi o caso de Frei Caneca, que dizia em 1824 que “uma constituição não é outra coisa, que a ata do pacto social”. Afirmava que:

“É princípio conhecido pelas luzes do presente século e até confessado por Sua Majestade, que a soberania, isto é, aquele poder, sobre o qual não há outro, reside na nação essencialmente; e deste princípio nasce como primária conseqüência, que a mesma nação é quem se constitui, (...) como Sua Majestade Imperial não é a nação, não tem soberania, nem comissão da nação brasileira para arranjar esboços de constituição e apresentá-los, não vem este projeto de fonte legítima, e por isso se deve rejeitar por exceção de incompetência. Muito principalmente [porque] Sua Majestade pelo mais extraordinário despotismo e de uma maneira a mais hostil dissolveu a soberana Assembléia e se arrogou o direito de projetar constituições.”

Frei Caneca, assim como milhares de outros brasileiros, se recusou a assinar o pacto social. Felizmente, no Brasil as forças da legalidade sempre andam bem armadas e em alguns meses o padre-bandido e muitos de seus parceiros do crime foram executados.

Com o fim da criminosa Confederação do Equador (uma formação de quadrilha com centenas de milhares de membros, talvez maior que o PCC, o CV, a Al Qaeda e a Mancha Verde juntos), o Pacto Social parecia estar a salvo. Porém, anos depois ele voltou a ser questionado por gente que não respeitava a Legalidade.

Entre 1835 e 1845 o Rio Grande do Sul rompeu ilegalmente com a soberania brasileira, em 1837 o mesmo ocorreu na Bahia e em 1848 em Pernambuco. Também havia quem interpretava mal a Constituição de 1824 (achavam, por exemplo, que igualdade significava igualdade e que liberdade significava liberdade), como em Mato Grosso em 1834, no Pará em 1835, no Maranhão em 1838, em São Paulo e Minas Gerais em 1842, etc., etc., etc.

Foi necessário que as forças da Legalidade matassem dezenas de milhares desses bandidos, vândalos e quiçá maconheiros para que o restante da população (cidadãos de bem que formavam um povo pacífico) se convencesse de que o Pacto havia sim sido assinado legitimamente em 1824 e que estava sendo bem interpretado. De fato, não conseguimos compreender a razão de tanta gente ter ficado do lado da bandidagem. Isso talvez se explique com a ciência atual, pelo fato de que a maior parte da população brasileira naquela época ser jovem e não ter o córtex pré-frontal totalmente formado, sendo esta a “área responsável por planejar o futuro, tomar decisões complexas e controlar a impulsividade, entre outras funções essenciais para a vida em sociedade” (Hélio Schwartsman. “Falta de juízo”. Folha de São Paulo, 9/11/2011).

O que sabemos é que felizmente havia instituições dispostas a manter a legalidade, como a força policial paulista, que trás até hoje em seu brasão de armas referências às vitórias contra duas daquelas facções criminosas: os Farroupilhas e os liberais de São Paulo.

3 – O herói da legalidade

Na segunda metade do século XIX a legalidade estava garantida. Isso foi possível graças a uma prática que até hoje distingue nossa democracia de fardas. Trata-se da qualificação de quem não respeita as leis como aquilo que são: bandidos. Ao que parece, o criador do método é o mais ilustre defensor da legalidade que o Brasil já teve, o Duque de Caxias, pacificador do Rio Grande do Sul, do Maranhão, de São Paulo e do Paraguai.

Entre 1838 e 1840 ele combateu os aloprados da Balaiada, num conflito que começou com 10 bandidos invadindo a cadeia para soltar prisioneiros. Discursou em 7 de fevereiro de 1840 aos cidadãos de bem do Maranhão:

“Um bando de facciosos, ávidos de pilhagem, pode encher de consternação, de luto e sangue, vossas cidades e vilas! O terror que necessariamente deviam infundir-vos esses bandidos concorreu para que se engrossassem suas hordas; contudo, graças à providência e às vitórias até hoje alcançadas pelos nossos bravos, seu número começa a diminuir diante das nossas armas. (…) Maranhenses! Mais militar que político, eu quero até ignorar os nomes dos partidos que por desgraça entre vós existam (…).”

Era óbvio que mais de 10 mil pessoas só tinham pegado em armas e se juntado aos primeiros porque estavam com medo daqueles 10 criminosos que arrombaram a cadeia. Afinal, eles eram bandidões desses bem maus e aterrorizantes. Deviam ser bem feios também, e há rumores de que usavam carapuças e que queimavam bandeiras do Império.

O escritor Gonçalves de Magalhães acompanhava Caxias nas operações de combate à bandidagem para informar aos cidadãos de bem de todo o Brasil o que estava acontecendo. Ele mostrou que na verdade a explicação era um pouco mais complexa e esclareceu a opinião pública escrevendo “A revolução da provincia do Maranhão desde 1839 até 1840 : memoria historica e documentada”. Nela, Magalhães explica que as razões do conflito eram:

a) a composição racial do sertão do Maranhão, com predomínio de mestiços de índios e negros, raças que tendem à barbárie;

b) os hábitos desses sertanejos, que eram essencialmente violentos, cruéis e vingativos;

c) as características de seu líder, Raymundo Gomes, um vaqueiro sanguinário, ignorante, analfabeto e incapaz de entender qualquer coisa de política;

d) extremistas liberais da capital que incentivavam esses caboclos ignorantes liderados por um vaqueiro sanguinário a fazer baderna.

Não há porque duvidar deste escritor, que estava na linha de frente, lado a lado com o comandante, e com acesso às fontes sobre o caso. Era uma espécie de Datena do século XIX.

Quanto ao primeiro ponto, é óbvio que ele não estava sendo racista, pois como já demonstrou o grande intelectual Demétrio Magnoli, no Brasil não existe racismo. Sendo assim, não entendemos bem o que ele quis dizer.

Quanto ao segundo ponto, é claro que aqueles sertanejos eram uns bandidos contumazes, afinal eles estavam arrombando uma cadeia! Tudo bem que não há indícios de que já tinham cometido crimes antes. Tudo bem também que eles não haviam libertado criminosos e sim cidadãos recrutados para o exército à força por métodos que contrariavam a Constituição. Também não vem ao caso que os próprios soldados da cidade, que protegiam a cadeia, tenham se juntado a eles, assim como milhares de outros indivíduos. Nem devemos levar em conta que os sertanejos tentaram o tempo todo negociar com as autoridades legais. O que importa é que invadiram um prédio público, depredaram o patrimônio, cometeram desobediência civil e formação de quadrilha. Conclusão: como bem disse Caxias, bandidos!

Quanto ao terceiro ponto, é evidente que Raimundo Gomes era ignorante, analfabeto e incapaz de pensar politicamente, É claro que não vem ao caso que ele seja o redator e signatário de muitas cartas, inclusive endereçadas a Caixas, e que certamente chegavam ao conhecimento de Gonçalves de Magalhães. Incluindo, é claro, o manifesto que os bandidos colocaram na cadeia ao invadi-la, exigindo:

“[...] Primeiro: que seja sustentada a Constituição e garantias dos cidadãos. Segundo, que seja demitido o presidente da Provincia, e entregue o governo ao vice-presidente. Terceiro: que sejam abolidos os prefeitos, subprefeitos, e comissários, ficando somente em vigor as leis gerais, e as provinciais que não forem de encontro à Constituição do Império. Quarto: que sejam expulsos dos empregos os portugueses, e despejarem a província dentro em quinze dias, com exceção dos casados com famílias brasileiras, e os velhos de 61 anos para cima”

Quanto ao quarto e último ponto, é óbvio que cartas e manifestos como estes só podem ter partido de extremistas liberais da capital, ainda que esses não tenham apoiado nem se relacionado com os baderneiros do interior. De alguma maneira misteriosa (Magalhães fala de uma "mão oculta"), isso só pode ser coisa deles, pois já ficou provado nos pontos anteriores que: a) de uma forma não racista, os caboclos são bárbaros; b) apesar de a violência mais brutal ter partido das forças de Caxias, eram os sertanejos que se distinguiam pela violência, crueldade e vingança; c) Raimundo Gomes era um assassino sem que isso possa ser provado, era um analfabeto que escrevia cartas e manifestos e era um ignorante em política que sustentava todas as suas reivindicações na Constituição de 1824.

Com tantas ressalvas, pode até parecer que Gonçalves de Magalhães não dizia a verdade. Mas podem confirmar nos seus livros de história: tirando a parte que parece racista (mas que não é, dado que estamos no Brasil), é a narrativa dele que aprendemos até hoje. Não tenhamos dúvida, portanto: se os historiadores continuam concordando com ele é porque essa interpretação Legalista (e aparentemente surrealista) dos fatos é a mais pura verdade!

Voltaremos em breve com a expressão da Vontade Geral nas constituições brasileiras.

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