Prefácio
Passo a postar meu presente de aniversário de casamento, comemorado (pela primeira vez à distância) no dia 6 de dezembro de 2011. São três anos desde aquela belíssima festa em Campo Limpo Paulista. De historiador para historiadora, decidi oferecer como presente uma história de nós dois. Mas deixo a pretensão de objetividade fora disso. Faço uma história metodologicamente incorreta, com mitos de origem, anacronismos, falta de rigor conceitual, ausência total de distanciamento científico. Não me prestaria a escrever uma história de amor com análise exaustiva de fontes ou notas de rodapé, e a perspectiva terá de ser sempre a minha, pois às vezes parece mais fácil saber o que se passou na cabeça da soldadesca cuiabana do século XIX do que o que se passa na cabeça de uma esposa. Os capítulos serão postados no decorrer deste mês, quando comemoramos o aniversário de casamento (hoje, dia 6), meu aniversário (dia 7), o aniversário da Carina (dia 12), a formatura dela e o fim do meu primeiro semestre como professor de História. Também comemoramos as férias, ainda que curtas, e ainda que parcialmente ocupadas pela revisão da minha dissertação, mas que vão ser bastante coisa pra quem só se viu por três breves períodos durante o semestre.
Capítulo 1: Conquista de Ocupação
Maio de 2007 foi decisivo na minha vida. Terminava a faculdade, ingressava na pós-graduação, tinha minha primeira experiência com roteiro. No dia 3, sofrendo com os pontos na boca após a extração dos dentes do siso, acompanhei pela Internet as noticias da ocupação da reitoria da USP. Cerca de uma semana depois, recuperado, fui participar de uma assembleia na reitoria ocupada. Apesar dos então cinco anos de vivência universitária, incluindo em diferentes momentos o movimento estudantil, aquela experiência me fascinou. No dia seguinte estava de volta, mochila nas costas, colchonete nas mãos. Fiquei mais de um mês passando a maior parte do tempo por lá. Redigi boa parte do meu projeto de mestrado nos computadores usados pela comissão de comunicação, quando estes ficavam vagos. Escrevi também o roteiro de “O Paraíso Sem Nós Dois” quase todo lá, bem como filmamos as cenas de escritório nas salas da reitoria, sem esquecermos de agradecer nos créditos à “Magnânima Suely Vilela, por ceder gentilmente o espaço da reitoria”.
Mais importante que tudo: comecei a ficar com a Carina numa festa da ocupação, nossos primeiros encontros foram nas assembleias. Antes nos conhecíamos de vista, porque sempre tivemos amigos em comum, mas na verdade nos beijamos antes de termos qualquer conversa maior que uma breve troca de palavras. Aliás, as palavras que antecederam o beijo foram seis “O Leal tá por aí?”, “Que?”. Eu, lerdo que sempre fui, é que fui beijado. Nem as cervejas da festa deram jeito na minha tradicional e quase absoluta falta de iniciativa. Depois do beijo, fomos buscar uma cerveja, que era vendida naquelas caixas d’água cheias de gelo, uma tradição das festas uspianas. Ela pediu um latão, disseram que não tinha mais nenhum, ela perguntou “Se eu achar é meu?”, responderam que sim, tamanha a convicção. Em alguns segundos estávamos tomando um latão de graça. Ela estava eufórica naquele dia, com a notícia vinda dos médicos de que sei pai tinha chances de sobreviver ao AVC que tinha sofrio dias antes. Tinha tido a pior semana da sua vida e quando se permitiu relaxar e festejar se deparou comigo.
Na dinâmica daquela ocupação, entre comissões, assembleias, atos e festas, nas filmagens do “Paraíso Sem Nós Dois”, nos butecos da vida, fomos nos encontrando meio casualmente, meio aquela coisa pensada meticulosamente e que a gente diz, às vezes até pra si mesmo, que é casualmente. Acho que todo mundo sabe o que é isso... Eu e um camarada com quem dialoguei muito na reitoria, e que também obteve a sua conquista da ocupação, dizíamos que era tudo um plano dessas agentes infiltradas pra nos desmobilizar. Mas nada disso: era uma razão a mais pra estar nas assembleias, era um incentivo a mais para ir aos atos, e não abandonamos em nenhum momento nossas responsabilidades, sendo que uma das minhas foi por um bom tempo preparar diariamente dezenas de garrafas de café que ajudavam o pessoal, principalmente das comissões de segurança e de comunicação, a cumprir suas funções por horas a fio.
Quem participou daquela ocupação sabe o que é a satisfação de ver uma comunidade com regras definidas de forma coletiva organizando seu cotidiano – segurança, alimentação, limpeza, cultura, comunicação, etc. -, sem subordinação que não seja ao coletivo reunido em assembleia. Aulas constantes, práticas e profundas de democracia. Com problemas, claro, com pequenas falhas em todas as áreas, com gente autoritária no meio (não só politicamente, basta lembrar aquela estudante que procurava manter um domínio territorial da cozinha e que apropriadamente foi apelidada de Dona Florinda). Com conflitos, sem dúvida, pois sem eles não há decisão coletiva. Com humor também. Foi lá que surgiu o cartaz "Godinho Pilantra", depois veiculado em sites de notícias e que uma professora perguntava se tinha alguma relação com eu estar me ocupando com alguém desde a ocupação. Foi também quando criamos a União da Juventude Jacobina, para contrapor ao “Antigo Regime” dos partidos uma defesa da soberania das decisões coletivas, da democracia direta que está entre as coisas mais positivas que se pode vivenciar no movimento estudantil. Contra a Rainha-(P)Sol, representando a realiza (e que teria dito a famosa frase “Eles são vazios politicamente, que comam brioches!”) contra o Papa Zé Maria XVI, representando o clero, os jacobinos recorriam a Rousseau, a Marat, a Robespierre.
Com problemas, conflitos e humor, com organização, democracia direta e amor. Claro, os ocupantes de reitorias também amam, e é este o assunto aqui. No dia 22 de junho, quando da desocupação, já éramos um casal apaixonado. Foi naquele lapso que tudo aconteceu, mas a ocasião (nós dois sabemos exatamente o dia em que deixamos de ser meros ficantes e passamos a ser dois completos apaixonados) será contada em outro capítulo. Se isso fosse uma análise histórica rigorosa, teríamos que compreender nossos primeiros encontros levando em conta as possibilidades e as determinações mais amplas que nos permitiram ou nos levaram a procurar um curso de história na USP e a conseguir ingressar nele, a ter convicções semelhantes sobre a universidade que nos levaram à ocupação... Teríamos talvez que questionar a construção social de personalidades que se identificam tão profundamente. Mas não. Tem mais beleza em chamar isso de destino.
Entre maio e junho de 2007 vencemos batalhas importantes dentro da reitoria da USP, incluindo a da comunicação, que nos permitiu um diálogo com a sociedade que hoje nos deixa saudosistas. Derrubamos os decretos que atentavam contra a autonomia universitária, saímos de cabeça erguida, pacificamente, com alegria e com direito a faxina na mídia corporativa. Derrotados depois pela engenhosa máquina de repressão e legitimação de João Grandino Rodas, inclusive com o descumprimento do acordo negociado em 2007 e que previa que não haveria perseguição política, quase nada restou daquela experiência. Restou, é claro, nosso aprendizado (e, em grau talvez muito maior, o aprendizado por parte da burocracia); sobrou, quem sabe, algo da nossa organização, algo das reivindicações também, pequenas conquistas que obtivemos na negociação. Mas, ainda que num plano que não o da construção política coletiva, o que sem dúvida permaneceu é aquilo que Grandino Rodas nenhum vai tirar: minha conquista da ocupação.
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