Escrevo para informar que este Calendário Insurrecional do Brasil só voltará a ser publicado no ano que vem. A ideia original era a de divulgar suas páginas diariamente, mantendo a regularidade até o final de 2012. Uma tarefa que eu sabia ser dificílima de empreender, especialmente por ser uma iniciativa individual - e talvez por isso precipitada, pois para ser bem-sucedida decerto requeria uma organização prévia junto a outros companheiros que se interessassem em construí-lo coletivamente. Iniciativa, enfim, que surgiu nos últimos dias de 2011, com o que não quis perder a oportunidade de começar no dia 1º de janeiro deste ano. Cheguei ao fim de julho (e postei no blog apenas até 11 de junho), mas o atraso é tamanho que não vejo sentido em publicá-lo em datas distantes das quais se referem.
Comecei acreditando que, por diversas razões, o Calendário era necessário para a época em que vivemos. Acredito mais ainda agora. Seu ponto de partida é o da urgência de se quebrar o encadeamento naturalizado da história brasileira, fundado num suposto progresso lento e gradual, sem organização e participação popular, interrompido apenas por momentos violentos ou autoritários estranhos à nossa índole pacífica, ordeira, acomodada, para a qual até a escravidão ganha o apelido de democrática. Esta concepção da história brasileira tem um efeito de realidade que temos negligenciado, mesmo quando elementos que a compõem são insistentemente lembrados.
A cada momento precisamos, no Brasil, começar as tradições de luta popular quase do zero, pois não temos um repertório de experiências, de referências, de sucessos e fracassos, ou qualquer lastro de uma organização que nos precede. A interrupção contínua dessa trajetória é facilmente substituída por uma linha evolutiva, segundo a qual nunca tivemos outra via e nunca se tentou outro futuro. Não sabemos que desde o século XIX se intentam grandes revoluções de caráter popular que são mais que respostas instintivas à miséria. Que a Independência foi uma guerra, com alguns setores populares em armas e que a Proclamação da República foi um episódio, decerto pacífico, de uma crise social que quase se pode chamar uma guerra civil, com forte participação popular. Que em plena década de 1830 (sim, mil oitocentos e trinta) quem tomava violentamente as principais ruas da capital do país defendia em seus panfletos o fim das distinções raciais, o voto universal inclusive feminino e uma reforma agrária que poucos ousariam exigir hoje (expropriação de toda terra, redistribuição como posse e não propriedade absoluta, posse esta condicionada à produção, à não acumulação pela mesma pessoa e não transmitida automaticamente por herança) . Perceber que não somos assim tão acomodados ou pacíficos e que a revolução social faz sim parte de nossa história, mesmo como experiência de derrota, faz muito mais sentido quando rememoramos.
É este o ponto de partida do Calendário, pois as raras vezes em que se fala em participação popular no Brasil esta é irracional, manobrada por outras classes ou simplesmente instintiva. Não sabemos que os balaios queriam mais do que lutar contra a miséria. Que exigiam igualdade entre ricos e pobres, brancos e negros, e o fim de um abuso de autoridade seletivo, de uma justiça que pune de acordo com a classe e a raça. Que aqueles lavradores pobres, supostamente ignorantes, compreenderam mais do caráter ideológico do universalismo do direito moderno que a maior parte dos cientistas sociais do século XX - e que se apropriaram dele à sua maneira, para desespero das classes dominantes. Compreender que consciência política não é atributo de alguma elite intelectual, mas de quem vivencia a luta cotidiana faz muito mais sentido quando rememoramos.
Mas o Calendário também traz a tradição de exceção, a violência estatal, os massacres de uma história supostamente pacífica no país em que atualmente mais se mata no mundo, em números absolutos. Não sabemos que os direitos dos cidadãos começaram a ser suspensos no Brasil desde que foram criados. Que voltaram a ser suspensos na vigência de outros regimes constitucionais. Que os regimes constitucionais deram lugar ao estado de exceção que não escondia sua natureza. Que para a maior parte dos brasileiros o estado de exceção foi norma no Império, na República Velha, na Era Vargas, nos “anos dourados” de JK, na barbárie do pós-64, na "redemocratização" dos anos 80 e na democracia do século XXI. A democracia na qual agentes do Estado matam quase 500 pessoas em uma semana e são parabenizados pela imprensa e pelo governador faria inveja a muitos genocidas. Lutar para investigar os crimes da ditadura, para assim melhor investigar e combater os crimes da democracia faz muito mais sentido quando rememoramos.
Contra o conceito de história que fundamenta o comodismo, o Calendário traz também uma crítica à fé no progresso econômico ou técnico-científico. Podemos até saber que o arraial de Canudos venceu diversas expedições militares antes de ser destruído, mas não que a comunidade do Caldeirão, semelhante em muitos aspectos, foi arrasada de uma vez, sem qualquer chance de vitória, pois passados 40 anos o Estado brasileiro já contava com aviões. Que milhares de pessoas morreram naquela comunidade, boa parte por bombardeios aéreos. Que agora quem matava sob as ordens do Estado não precisava mais olhar nos olhos de suas vítimas. Da mesma forma como não sabemos que sob os prédios que melhor simbolizam a modernização brasileira se encontram os cadáveres de muitos dos operários que construíram Brasília e que um dia se rebelaram contra as condições em que viviam. Que os tratores empregados nas obras serviram para cavar suas valas comuns. Que não é impossivel que a cada sessão do Congresso ou do Supremo se esteja deliberando por cima dos corpos desses operários. Entender que o progresso técnico e que a modernização não vão nos salvar faz muito mais sentido quando rememoramos.
Tendo como postagem mais visitada o especial do dia internacional de luta das mulheres, o Calendário também procura lembrar que em todos os processos revolucionários as mulheres foram (e são) importantes no campo de batalha, ampliando os sentidos da luta por liberdade e desnaturalizando opressões enraizadas nas próprias fileiras dos que enfrentam o poder. Não sabemos que ao longo desses séculos milhares de mulheres enfrentaram exércitos treinados pelo Estado que só as aceitariam em funções auxiliares, supostamente próprias ao seu gênero. Que aos 18 anos de idade Amélia Reginaldo e outras três companheiras entraram no quartel de Natal com armas nas mãos e ajudaram a toma-lo numa das muitas tentativas de realizar a nossa revolução. Que, filha de revolucionários, Amélia nasceu Rosa Luxemburgo, mas foi obrigada a mudar de nome para não atrair a repressão. Lutar para que mulheres possam ser Rosa Luxemburgo, ou quem desejarem, mesmo quando lhes querem forçar a ser Amélia faz muito mais sentido quando rememoramos.
Mostramos dezenas de crimes de nossa última ditadura, lembramos que a resistência ao regime foi muito além dos anos rebeldes de jovens idealistas. Pois não sabemos que gente de todas as classes, de todas as cores, de todos os gêneros, de todas as idades lutou com os mais variados meios para derrubar a ditadura, mas que foi sobretudo como luta por um destino popular e contra um passado de opressão que a resistência encontrou sua unidade. Que sem-terras e indígenas foram massacrados aos montes e hoje se encontram excluídos da memória dessa resistência. Que as ações armadas definidas de forma canalha como terroristas são a violência contra a tirania, legítima até nas cartilhas clássicas e supostamente sagradas do liberalismo. Recuperar a história da luta revolucionária que nos pertence a todos (e não apenas aos dignos sobreviventes da barbárie que hoje se satisfazem com um Estado dito democrático que mata mais brasileiros que a ditadura) faz muito mais sentido quando rememoramos.
Lembramos dia a dia que a última ditadura não sufocou apenas a disputa política e a liberdade da imprensa, mas também a subsistência, a dignidade e a possibilidade de organização e luta das classes populares; a construção de um espaço público minimamente aberto à participação; o desenvolvimento econômico com alcance social e autônomo diante das potências mundiais, as manifestações culturais para muito além da censura pura e simples. Que a mesma imprensa que relembra hoje seu heroísmo ao enfrentar a ditadura comemorou o golpe, ganhou poder e dinheiro por sua conivência com o regime e construiu para si uma memória de mentira que hoje convence a quase todos. Compreender que a liberdade de expressão que temos nada mais é que a liberdade de alguns senhores para reinventar passado e presente e silenciar as outras vozes faz muito mais sentido quando rememoramos.
Trouxemos ainda opressões velhas e novas e a intolerância crua de um país onde quase todos se creem abertos à diversidade. Pois não sabemos que para uma família ser um homem e uma mulher unidos pelo sagrado matrimônio muita gente morreu na fogueira da inquisição. Que para sermos um país predominantemente cristão muito terreiro foi invadido, muito indígena foi assassinado ou batizado à força, muito muçulmano foi açoitado, degredado ou morto. Que para a língua portuguesa ser a única apendida no berço para quase todos os brasileiros, centenas de outras línguas foram eliminadas sem deixar vestígios. Entender que o que temos por “normal” ou por “próprio do país” se deve à unificação violenta do mundo pelo mercado, mediada pela ação de um Estado nacional, faz muito mais sentido quando rememoramos.
Ocorre que podemos e devemos rememorar. Ocorre que mesmo quando não sabemos disso tudo desconfiamos da imagem “eterna” do passado que nos é apresentada, desconfiamos que é preciso fazer explodir esta linha tão cuidadosamente construída para nos ensinar que se deixar levar pela corrente é a coisa mais segura a fazer. Mesmo quem nunca se aproximou do trabalho do historiador já sentiu muitas vezes, ao ouvir sobre a nossa história, a impressão de estar diante de uma fábula. Esta sensação não se dá por acaso.
É como um passo para romper com esta fábula que o Calendário Insurrecional do Brasil foi pensado. Sua interrupção provisória não é uma desistência ou uma mudança de proposta, mas uma tentativa de retomá-lo com maior vigor. Que haverá interesse em fazê-lo não tenho dúvidas. Nestes 9 meses, ele rendeu discussões sobre passado e presente do Brasil, ao menos dentre as pessoas que conheço, sendo que conheci algumas em decorrência de sua publicação. Resultou também numa parceria com o Núcleo Piratininga de Comunicação, com o qual eu e minha esposa colaboramos para a elaboração da Agenda 2013 “Lutas, Revoltas, Levantes e Insurreições Populares no Brasil dos séculos XIX, XX e XXI”. Recebi sugestões que eram mais do que conversa de buteco para transforar seu conteúdo em livro, em série de curtas-metragens e em inserções numa rádio não-comercial. Acho que isso e muito mais pode ser feito, não exatamente a partir do Calendário, mas de ideias que estão em sua origem e que evidentemente não são apenas minhas, nem apenas uma apropriação – de resto óbvia – das teses de Benjamin.
Ideias que estão, há muito mais tempo, nas místicas dos movimentos sociais, nas quais se atualiza um passado que os dominadores enterraram ainda vivo. Que estão na música, de Geraldo Filme a Mano Brown. Que estão no na poesia, dos cordéis do sertão aos saraus das periferias de São Paulo. Que estão no jornalismo (aquele que incomoda, pois como um sábio já disse, todo o resto é publicidade), de Ezequiel Corrêa dos Santos a André Caramante. Que estão por toda parte, se manifestando "na luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, agindo de longe, do fundo dos tempos".
O Calendário, me comprometo, volta no dia 1º de janeiro de 2013. Espero até lá contar com propostas de colaboração e sugestões para que volte com mais força, como algo que é mais que uma iniciativa individual. Provavelmente volta em novo endereço, com novas formas de divulgação, em parte com as mesmas lutas e violências. Mas também com outras que, diga o que quiser a mídia, ocorreram e vão ocorrer no ano de 2012. A imprensa não noticiou quando Caxias incendiou comunidades pobres ao reprimir a balaiada. Chamavam-no “pacificador do Maranhão”, aquele que estava retomando o controle do Estado sobre o que, segundo suas palavras, estava nas mãos de “bandidos”. Se hoje comunidades pobres são incendiadas com a conivência ou a iniciativa do poder público, se uma guerra interna é travada em nome da pacificação e da retomada dos territórios dos bandidos, não é a imprensa que vai nos dizer. Ela vai nos dizer, como o historiador de Caxias, que esta luta nada tem de política, mas que trata-se simplesmente de impor a ordem e a civilização onde antes reinava a desordem e a barbárie de um povo ignorante e incapaz de se organizar.
O Calendário voltará porque todos os combates do presente exigem a expropriação da história que nos foi negada.
Comecei acreditando que, por diversas razões, o Calendário era necessário para a época em que vivemos. Acredito mais ainda agora. Seu ponto de partida é o da urgência de se quebrar o encadeamento naturalizado da história brasileira, fundado num suposto progresso lento e gradual, sem organização e participação popular, interrompido apenas por momentos violentos ou autoritários estranhos à nossa índole pacífica, ordeira, acomodada, para a qual até a escravidão ganha o apelido de democrática. Esta concepção da história brasileira tem um efeito de realidade que temos negligenciado, mesmo quando elementos que a compõem são insistentemente lembrados.
A cada momento precisamos, no Brasil, começar as tradições de luta popular quase do zero, pois não temos um repertório de experiências, de referências, de sucessos e fracassos, ou qualquer lastro de uma organização que nos precede. A interrupção contínua dessa trajetória é facilmente substituída por uma linha evolutiva, segundo a qual nunca tivemos outra via e nunca se tentou outro futuro. Não sabemos que desde o século XIX se intentam grandes revoluções de caráter popular que são mais que respostas instintivas à miséria. Que a Independência foi uma guerra, com alguns setores populares em armas e que a Proclamação da República foi um episódio, decerto pacífico, de uma crise social que quase se pode chamar uma guerra civil, com forte participação popular. Que em plena década de 1830 (sim, mil oitocentos e trinta) quem tomava violentamente as principais ruas da capital do país defendia em seus panfletos o fim das distinções raciais, o voto universal inclusive feminino e uma reforma agrária que poucos ousariam exigir hoje (expropriação de toda terra, redistribuição como posse e não propriedade absoluta, posse esta condicionada à produção, à não acumulação pela mesma pessoa e não transmitida automaticamente por herança) . Perceber que não somos assim tão acomodados ou pacíficos e que a revolução social faz sim parte de nossa história, mesmo como experiência de derrota, faz muito mais sentido quando rememoramos.
É este o ponto de partida do Calendário, pois as raras vezes em que se fala em participação popular no Brasil esta é irracional, manobrada por outras classes ou simplesmente instintiva. Não sabemos que os balaios queriam mais do que lutar contra a miséria. Que exigiam igualdade entre ricos e pobres, brancos e negros, e o fim de um abuso de autoridade seletivo, de uma justiça que pune de acordo com a classe e a raça. Que aqueles lavradores pobres, supostamente ignorantes, compreenderam mais do caráter ideológico do universalismo do direito moderno que a maior parte dos cientistas sociais do século XX - e que se apropriaram dele à sua maneira, para desespero das classes dominantes. Compreender que consciência política não é atributo de alguma elite intelectual, mas de quem vivencia a luta cotidiana faz muito mais sentido quando rememoramos.
Mas o Calendário também traz a tradição de exceção, a violência estatal, os massacres de uma história supostamente pacífica no país em que atualmente mais se mata no mundo, em números absolutos. Não sabemos que os direitos dos cidadãos começaram a ser suspensos no Brasil desde que foram criados. Que voltaram a ser suspensos na vigência de outros regimes constitucionais. Que os regimes constitucionais deram lugar ao estado de exceção que não escondia sua natureza. Que para a maior parte dos brasileiros o estado de exceção foi norma no Império, na República Velha, na Era Vargas, nos “anos dourados” de JK, na barbárie do pós-64, na "redemocratização" dos anos 80 e na democracia do século XXI. A democracia na qual agentes do Estado matam quase 500 pessoas em uma semana e são parabenizados pela imprensa e pelo governador faria inveja a muitos genocidas. Lutar para investigar os crimes da ditadura, para assim melhor investigar e combater os crimes da democracia faz muito mais sentido quando rememoramos.
Contra o conceito de história que fundamenta o comodismo, o Calendário traz também uma crítica à fé no progresso econômico ou técnico-científico. Podemos até saber que o arraial de Canudos venceu diversas expedições militares antes de ser destruído, mas não que a comunidade do Caldeirão, semelhante em muitos aspectos, foi arrasada de uma vez, sem qualquer chance de vitória, pois passados 40 anos o Estado brasileiro já contava com aviões. Que milhares de pessoas morreram naquela comunidade, boa parte por bombardeios aéreos. Que agora quem matava sob as ordens do Estado não precisava mais olhar nos olhos de suas vítimas. Da mesma forma como não sabemos que sob os prédios que melhor simbolizam a modernização brasileira se encontram os cadáveres de muitos dos operários que construíram Brasília e que um dia se rebelaram contra as condições em que viviam. Que os tratores empregados nas obras serviram para cavar suas valas comuns. Que não é impossivel que a cada sessão do Congresso ou do Supremo se esteja deliberando por cima dos corpos desses operários. Entender que o progresso técnico e que a modernização não vão nos salvar faz muito mais sentido quando rememoramos.
Tendo como postagem mais visitada o especial do dia internacional de luta das mulheres, o Calendário também procura lembrar que em todos os processos revolucionários as mulheres foram (e são) importantes no campo de batalha, ampliando os sentidos da luta por liberdade e desnaturalizando opressões enraizadas nas próprias fileiras dos que enfrentam o poder. Não sabemos que ao longo desses séculos milhares de mulheres enfrentaram exércitos treinados pelo Estado que só as aceitariam em funções auxiliares, supostamente próprias ao seu gênero. Que aos 18 anos de idade Amélia Reginaldo e outras três companheiras entraram no quartel de Natal com armas nas mãos e ajudaram a toma-lo numa das muitas tentativas de realizar a nossa revolução. Que, filha de revolucionários, Amélia nasceu Rosa Luxemburgo, mas foi obrigada a mudar de nome para não atrair a repressão. Lutar para que mulheres possam ser Rosa Luxemburgo, ou quem desejarem, mesmo quando lhes querem forçar a ser Amélia faz muito mais sentido quando rememoramos.
Mostramos dezenas de crimes de nossa última ditadura, lembramos que a resistência ao regime foi muito além dos anos rebeldes de jovens idealistas. Pois não sabemos que gente de todas as classes, de todas as cores, de todos os gêneros, de todas as idades lutou com os mais variados meios para derrubar a ditadura, mas que foi sobretudo como luta por um destino popular e contra um passado de opressão que a resistência encontrou sua unidade. Que sem-terras e indígenas foram massacrados aos montes e hoje se encontram excluídos da memória dessa resistência. Que as ações armadas definidas de forma canalha como terroristas são a violência contra a tirania, legítima até nas cartilhas clássicas e supostamente sagradas do liberalismo. Recuperar a história da luta revolucionária que nos pertence a todos (e não apenas aos dignos sobreviventes da barbárie que hoje se satisfazem com um Estado dito democrático que mata mais brasileiros que a ditadura) faz muito mais sentido quando rememoramos.
Lembramos dia a dia que a última ditadura não sufocou apenas a disputa política e a liberdade da imprensa, mas também a subsistência, a dignidade e a possibilidade de organização e luta das classes populares; a construção de um espaço público minimamente aberto à participação; o desenvolvimento econômico com alcance social e autônomo diante das potências mundiais, as manifestações culturais para muito além da censura pura e simples. Que a mesma imprensa que relembra hoje seu heroísmo ao enfrentar a ditadura comemorou o golpe, ganhou poder e dinheiro por sua conivência com o regime e construiu para si uma memória de mentira que hoje convence a quase todos. Compreender que a liberdade de expressão que temos nada mais é que a liberdade de alguns senhores para reinventar passado e presente e silenciar as outras vozes faz muito mais sentido quando rememoramos.
Trouxemos ainda opressões velhas e novas e a intolerância crua de um país onde quase todos se creem abertos à diversidade. Pois não sabemos que para uma família ser um homem e uma mulher unidos pelo sagrado matrimônio muita gente morreu na fogueira da inquisição. Que para sermos um país predominantemente cristão muito terreiro foi invadido, muito indígena foi assassinado ou batizado à força, muito muçulmano foi açoitado, degredado ou morto. Que para a língua portuguesa ser a única apendida no berço para quase todos os brasileiros, centenas de outras línguas foram eliminadas sem deixar vestígios. Entender que o que temos por “normal” ou por “próprio do país” se deve à unificação violenta do mundo pelo mercado, mediada pela ação de um Estado nacional, faz muito mais sentido quando rememoramos.
Ocorre que podemos e devemos rememorar. Ocorre que mesmo quando não sabemos disso tudo desconfiamos da imagem “eterna” do passado que nos é apresentada, desconfiamos que é preciso fazer explodir esta linha tão cuidadosamente construída para nos ensinar que se deixar levar pela corrente é a coisa mais segura a fazer. Mesmo quem nunca se aproximou do trabalho do historiador já sentiu muitas vezes, ao ouvir sobre a nossa história, a impressão de estar diante de uma fábula. Esta sensação não se dá por acaso.
É como um passo para romper com esta fábula que o Calendário Insurrecional do Brasil foi pensado. Sua interrupção provisória não é uma desistência ou uma mudança de proposta, mas uma tentativa de retomá-lo com maior vigor. Que haverá interesse em fazê-lo não tenho dúvidas. Nestes 9 meses, ele rendeu discussões sobre passado e presente do Brasil, ao menos dentre as pessoas que conheço, sendo que conheci algumas em decorrência de sua publicação. Resultou também numa parceria com o Núcleo Piratininga de Comunicação, com o qual eu e minha esposa colaboramos para a elaboração da Agenda 2013 “Lutas, Revoltas, Levantes e Insurreições Populares no Brasil dos séculos XIX, XX e XXI”. Recebi sugestões que eram mais do que conversa de buteco para transforar seu conteúdo em livro, em série de curtas-metragens e em inserções numa rádio não-comercial. Acho que isso e muito mais pode ser feito, não exatamente a partir do Calendário, mas de ideias que estão em sua origem e que evidentemente não são apenas minhas, nem apenas uma apropriação – de resto óbvia – das teses de Benjamin.
Ideias que estão, há muito mais tempo, nas místicas dos movimentos sociais, nas quais se atualiza um passado que os dominadores enterraram ainda vivo. Que estão na música, de Geraldo Filme a Mano Brown. Que estão no na poesia, dos cordéis do sertão aos saraus das periferias de São Paulo. Que estão no jornalismo (aquele que incomoda, pois como um sábio já disse, todo o resto é publicidade), de Ezequiel Corrêa dos Santos a André Caramante. Que estão por toda parte, se manifestando "na luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, agindo de longe, do fundo dos tempos".
O Calendário, me comprometo, volta no dia 1º de janeiro de 2013. Espero até lá contar com propostas de colaboração e sugestões para que volte com mais força, como algo que é mais que uma iniciativa individual. Provavelmente volta em novo endereço, com novas formas de divulgação, em parte com as mesmas lutas e violências. Mas também com outras que, diga o que quiser a mídia, ocorreram e vão ocorrer no ano de 2012. A imprensa não noticiou quando Caxias incendiou comunidades pobres ao reprimir a balaiada. Chamavam-no “pacificador do Maranhão”, aquele que estava retomando o controle do Estado sobre o que, segundo suas palavras, estava nas mãos de “bandidos”. Se hoje comunidades pobres são incendiadas com a conivência ou a iniciativa do poder público, se uma guerra interna é travada em nome da pacificação e da retomada dos territórios dos bandidos, não é a imprensa que vai nos dizer. Ela vai nos dizer, como o historiador de Caxias, que esta luta nada tem de política, mas que trata-se simplesmente de impor a ordem e a civilização onde antes reinava a desordem e a barbárie de um povo ignorante e incapaz de se organizar.
O Calendário voltará porque todos os combates do presente exigem a expropriação da história que nos foi negada.
Godinho.
Em 29 de setembro de 1992 produziu-se neste país um dos mais surpreendentes desfechos para uma crise política que tudo indicava se encaminharia, como de costume, ou para mais uma ruptura da institucionalidade, ou, menos dramaticamente, para a manutenção no poder, até seu termo legal, de um governo em decomposição, sem credibilidade e, portanto, impotente diante de dificuldades que já se interpretavam como igualmente crônicas e insolúveis.Quando, em 29 de setembro daquele já distante ano de 1992, sem golpe, sem interferência militar, os brasileiros acompanharam via tv e rádio, ao vivo, a deposição legal do presidente Fernando Collor de Mello, em sessão extraordinária do Congresso Nacional, encerrava-se de modo inusitado o primeiro governo civil e diretamente eleito após o Regime Militar, ao mesmo tempo em que se abria uma nova era para a política brasileira, da qual ainda hoje mal podemos visualizar e caracterizar os traços principais.
ResponderExcluirTrês meses depois, antes de ser julgado e impedido definitivamente pelo Senado Federal, Collor renunciou. Mesmo assim teve seus direitos políticos cassados por oito anos. O vice-presidente Itamar Franco assumiu em definitivo o cargo e completou o mandato restante.