Em meio à leitura do processo criminal da sedição cuiabana de 1834
tive como desafio entregar um artigo sobre sujeitos coletivos, classes
sociais e raças. Parti de uma estratégia simples para abordar o tema:
a) definir como as pessoas se identificavam politicamente na época (rótulos partidários, etc.),
b) em
seguida analisar, na medida do possível, a situação de classe
(basicamente através de duas variáveis: ocupação/profissão e
propriedade) e a classificação racial (segundo critérios da época,
brancos, crioulos, pardos, mulatos, etc.) de cada um dos envolvidos nos
“campos políticos” opostos.
c) Interpretar
as relações entre as identidades políticas no nível do discurso
(liberais x caramurus, brasileiros x portugueses,guarda nacional x
tropas regulares) e a situação de divisão em classes e raças,numa
sociedade profundamente marcada pelos dois tipos de distinção (e de
exploração/opressão)
A falta de dados não permitiu ir muito
longe, mas algumas coisas chamaram a atenção já na etapa de análise de
classes e raças. A primeira delas é que dentre os caramurus/portugueses
mortos pelos rebeldes liberais/brasileiros apenas um não era
proprietário de comércio, imóveis e/ou fazendas (era um assalariado,
caixeiro de um comerciante chamado Domingos), e este sujeito, cuja morte
é relatada muitas vezes, é também o único que não tem um nome. Em toda a
documentação de centenas de páginas ele é “um caixeiro do Domingão”.
Daí uma dificuldade elementar para a escrita da história dos grupos
subalternos: às vezes quem não tem propriedade nem nome possui. Ser uma
extensão de seu patrão não é algo que diz respeito apenas a escravos.
A
segunda coisa que chamou a atenção é a presença de algumas lideranças
não-brancas dentre os rebeldes – três descritos como “mulatos” e um como
“pardo”. Lideranças que ocupavam cargos importantes, como vereador,
oficial da guarda nacional e mesmo o único deputado geral (hoje diríamos
“federal”) eleito pela província – e que foi um dos primeiros
parlamentares brasileiros a propor a abolição da escravidão, mais de 50
anos antes da Lei Áurea. No processo, apenas réus não-brancos têm a cor
descrita nos autos. Dentre os que não possuem esta indicação o índice de
condenações foi de 41%, enquanto para “mulatos”e “pardos” foi de...
100%. Após incriminações com base bastante suspeita, já nos últimos
depoimentos surgem afirmações de que dois desses quatro haviam propagado
dentre os “soldados e a canalha” (isto é, os pobres pretos e pardos) a
ideia de que “os brancos já tinham governado” e que agora era a vez
deles. Se o fizeram, temos uma clara tomada de consciência da opressão
racial que estrutura aquela (e esta) sociedade. Se não o fizeram, temos
mais um exemplo do uso da classificação racial para incriminar esses
indivíduos. Afinal, no discurso dominante quem racializa essa sociedade
sem classificações são eles, os classificados como “pardos” e
“mulatos”.
Espero que o restante da documentação torne mais claro esse tempo de caixeiros sem nome e pardos presumidamente culpados – um tempo, afinal, tão próximo do nosso.
PS:
A história de pobres e pretos tem essas dificuldades todas, mas não é
tão obscura se comparada à história da atuação das mulheres.Talvez eu
venha a fazer um “instantâneo” desses sobre isso.